Eles saíram, mas voltaram. Nos dariam de presente outras duas músicas antes da palestra, digo aula, do ministro Antonio Anastasia. Na interação com um deles, que representava o grupo, Inácia Soares, a jornalista que conduzia aquele momento, perguntou ao jovem Wesley há quanto tempo ele se dedicava àquela arte. Dez anos foi a resposta de um rapaz que hoje tem pouco mais de vinte anos de idade.
Wesley, como os outros, e também os que faziam a cobertura de vídeo e fotografia daquele evento, são alunos do Instituto Ramacrisna, instituição social fundada em 1959 pelo jornalista Arlindo Corrêa da Silva e que em seu nome homenageia o filósofo indiano Sri Ramakrishna, ecumenista que viveu no século 19 e pregava o trabalho social como forma de transformação do ser humano.
Era a primeira vez que a mãe do Wesley o assistiria tocar num evento daquele porte, o 18º Encontro Nacional do Terceiro Setor, promovido pela Fundamig e Caots/MPMG. Convidada ao palco, ela ouviu as respostas serenas do filho, de que aquele era o seu sonho. Ele não demonstrou preocupação em ganhar dinheiro ou fama, ele disse apenas que queria ter o seu trabalho reconhecido, assim como é o do seu maestro, Eliseu Martins de Barros.
Presentes naquela plateia estavam representantes de ONGs e fundações, que fazem efetivamente o social acontecer em Minas Gerais, seja na área assistencial, necessária para que o indivíduo permaneça vivo, seja participando dos projetos que lhe ampliem as demais perspectivas.
No último dos três dias de evento, uma surpresa foi dada aos participantes: os famosos móbiles de tsurus e borboletas feitos na unidade prisional de São Joaquim de Bicas 1. Só que isso já é uma história à parte: convidados pela direção do presídio, fui com a Angelita das Mercês, do Conselho da Comunidade da Comarca de Igarapé, conversar sobre a criação de uma ala, com a capacidade para 130 custodiados, dedicada ao artesanato social. Mas como seria isso? Eles receberiam material para confecção de artesanato, através de doação do conselho da comunidade ou de parceiros, e toda produção seria destinada a instituições sociais.
E assim foi feito. Um dia um dos custodiados sugeriu a criação de “borboletário”, ou móbiles de papel colorido, usando a linha que eles mesmos produzem em cela, proveniente da embalagem individual e descartável de leite, que agora não iria mais para o lixo, Daí também surgiu a ideia de fazerem tsurus, aqueles pássaros da tradição japonesa que simbolizam saúde, sorte, liberdade, longevidade e felicidade. Mas, o problema é que apenas um, dentre os 130 custodiados, sabia fazer o tal do origami.
Foi durante o banho de sol que este rapaz ensinou aos outros. Assim, com papel e linha nas mãos, era hora de praticar. A primeira produção foi destinada a enfeitar lares de idosos. No dia em que cheguei para pegar os artesanatos, os tetos das celas, com pé direito alto para caberem os beliches em alvenaria, estavam coloridos, com móbiles pendurados, pairando sobre as cabeças de quem habitava cada “barraco”. Ao ouvirem a minha voz, os custodiados das celas do fundo iam descendo os móbiles e pendurando-os nas grades, que se estendem de uma parede a outra. Daquele cinza brotavam borboletas e pássaros coloridos, que voavam freneticamente, trazendo para a aridez de um presídio cores e alguns sons do encontro de um pássaro ao bater no outro, motivado pelo vento.
Recolhi a produção e levei para casa, para separar. Foi aí que percebi que uns bichinhos eram menores que os outros, que a distância entre um e outro, na linha, não era simétrica, que alguns deles tinham marquinhas pretas, decorrentes do excesso de mosquitos nas celas. Ao deixarem expostos no teto, me aguardando, os tsurus eram quase que defumados, com o cheiro do fumo exalado pela maioria daqueles artistas aprisionados.
Nessa hora que pensei em tomar algumas atitudes simples, como levar sacos plásticos para a proteção de cada móbile e convidar um professor que ensinasse as dobraduras perfeitas, melhorando a estética daquela produção. Foi aí que lembrei da Dra. Nise da Silveira, psiquiatra alagoana, que assumindo os pacientes que ninguém queria, usou a arte, de maneira livre e espontânea, para conectar-se àqueles homens e mulheres ditos insanos e destinados a morrerem num hospital psiquiátrico.
Cada móbile desses que hoje damos de presente é bem o reflexo das imperfeições de cada um que os constrói. Ali eles se traduzem, se refletem. Neste reconhecimento da imperfeição dos móbiles vamos trabalhando as imperfeições do ser humano e ao passo em que o custodiado – e nós próprios- vai se encontrando, a arte muda, muda a vida, mudam-se vidas.
A perfeição, nem mesmo aqueles músicos do Ramacrisna conseguirão atingir, pois se desafiarão a se superarem sempre que chegarem próximos a ela. É reconhecendo as imperfeiçoes que podemos nos provocar a algum movimento e, como pregava Ramakrishna, apoiando a nossa transformação.
Nossos tsurus e borboletas são imperfeitamente belos.