Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Lembranças

Publicado em 17/02/2023 às 06:00.

Vi um comentário na internet, no perfil de alguém que eu sigo, a respeito de um dos livros da filósofa Djamila Ribeiro, em que ela aborda a história da sua família, narrando desde a infância até os dias atuais, construindo um encadeamento de lembranças e das memórias da sua avó.

O livro “Cartas para minha vó” conversa, de algum modo, com muitos de nós que tivemos a presença viva de uma figura de afeto, proteção e carinho e que materializava tudo isso na pessoa de uma avó materna ou paterna. Ou nas duas.

Tempos depois comprei o livro e fui percebendo que estas cartas, escritas como homenagem, mas também para que histórias ricas dos avós não se perdessem no tempo, podem ser feitas por muitos de nós, inclusive idealizando alguém do passado com quem a gente conversaria, falando aquilo que não tínhamos maturidade para falar e resgatando histórias que nos sirvam como inspiração.

Sei que nem todo mundo teve uma referência de avó como eu e a Djamila tivemos. Sei também que alguns não nutrem boas lembranças de pessoas do seu passado e que o conceito de família é simbolicamente modificado de uma para outra pessoa. O que pode significar segurança para um, pode ser medo para outro.

Mas também sei que qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa, como me ensinou o mestre Belchior.

Assim, tive a ideia de escrever as minhas próprias cartas, para pessoas do meu passado, que já partiram ou não, falando da minha relação com elas e das lembranças mais marcantes que consigo carregar. Neste exercício eu até consigo buscar referências com primos, tios, irmãos e com a minha mãe de fatos que eu lembro com pouca nitidez, como um carro que minha avó ganhou num sorteio que eu sempre achei que fosse no programa do Sílvio Santos e minha mãe explicou o meu equívoco.

Na verdade, a minha avó foi comtemplada por numa loja de tecidos chamada Erontex, que se expandiu com a venda de carnês que sorteavam prêmios e que num desses golpes da sorte, minha avó ganhou um fusca vermelho. Lembro muito que o meu avô ligava o carro todos os dias na garagem para aquecer o motor e, também diariamente, tirava a poeira que ia acumulando com um espanador, já que com o passar do tempo o veículo virou uma peça de colecionador.

Histórias assim nos fazem muito bem quando conseguem nos proporcionar a lembrança afetiva, o aprendizado com o passado, as recordações que o nosso cérebro marca, como carimbo mesmo, como positivas.

Mas, há outro fator interessante.

Como num ditado Iorubá que diz: “Exú matou um pássaro ontem com a pedra que jogou só hoje”, fazendo uma alusão de que há coisas do passado que não demos conta de resolver e que podem muito bem hoje serem vistas de maneira diferente, devido à maturidade que alcançamos.

Isso quer dizer que ao escrevermos nossas próprias cartas, fazemos o exercício de voltar lá nos ciclos não fechados, nas dores não cicatrizadas e hoje, com um olhar mais ampliado, resolver estas questões. É um perdão que não foi pedido, as desculpas a alguém que não conseguimos formular, uma dependência de pessoas e situações que nos prende de forma nada agradável ao passado.

Assim, estou escrevendo as minhas cartas.

Em sendo a pessoa viva, dá para resolver com a presença de ambos. Se a situação for traumática e a outra pessoa não der conta de fechar o ciclo dela, conduzo ao menos para que o meu seja encerrado.

Porém, o melhor disso tudo é conseguir ter saudade e boas lembranças de ter vivido algo.

Lembro da minha avó e dos seus doces; da sua companhia no portão da rua, ainda de madrugada, esperando o ônibus aparecer lá no horizonte, momento em que ela se despedia de mim, quase que fazendo uma oração para que Deus me protegesse e abençoasse o meu dia, que ainda estava muito escuro quando eu tomava o ônibus para ir de Santa Luzia a Belo Horizonte estudar.

Como esquecer o cheiro da canja de galinha que ela fazia; os bolos quentinhos sendo colocados para esfriar no balcão da cozinha; o pão de sal com carne moída, que ela embalava num papel alumínio e me dava para eu levar de lanche, já que eu não tinha dinheiro para comprar algo na cantina da escola.

Recordo-me do oratório da minha vó, que ficava em seu quarto, como uma vela acessa diariamente, iluminando a fé de uma senhora que acordava no meio da madrugada para rezar.

Eu entendi a Djamila ao escrever as suas cartas, pois é para se entender melhor que este movimento ao passado é necessário, dando sentido ao presente e ao que virá.

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