Cheguei muito cansado de uma viagem à cidade de Itamarandiba. O encontro com os profissionais da prefeitura foi muito bom, as pessoas ouviram, interagiram, contaram suas experiências, deixando o ambiente mais próximo e acolhedor.
Antes da palestra, sentado esperando me chamarem, dois cachorrinhos passeavam entre o público. Um deles, maior e bem gordinho, passou por mim e eu acariciei a sua cabeça, o que já caracterizou um compromisso entre nós.
Ele parou, colocou o queixo na minha perna, pedindo mais afago numa comunhão de dois seres carentes.
Ao chegar em casa eu ainda tinha que preparar minhas três palestras para o dia seguinte. Apesar de convidado com antecedência, a correria me fez empurrar esta tarefa para cima da hora. Antes da pandemia eu era figurinha marcada nas unidades socioeducativas para adolescentes em conflito com a lei.
Fui então para o dia de atividade intensa. Na minha mente, o tema do evento me incomodava: “Semana das Juventudes”. Eu não queria falar só da minha experiência nos ambientes prisionais. Era preciso ampliar as perspectivas e sensibilizar aqueles meninos e meninas para buscarem um sentido de vida que os aproxime da família ou de quem os ame de verdade.
Porém, num ambiente de restrição de liberdade, também achei importante alertá-los para caminhos que eles poderiam seguir, apesar das pesadas consequências desta escolha.
- “Meu Deus, é escolha mesmo?”, pensava eu o tempo todo. Uma pedagoga cubana dizia que podemos considerar que o indivíduo nasce protegido por algumas “malhas”. Eu faria a analogia com aquela boneca russa, a Matrioska. Inclusive, pesquisando sobre este brinquedo tão alegórico, encontrei uma explicação que cabe aqui em minha teoria: de acordo com a cultura russa, as famosas matrioskas simbolizam a ideia de maternidade, fertilidade, amor e amizade. O fato de uma boneca sair de dentro de outra maior representa o ato do parto, quando a mãe dá à luz a sua filha e, consequentemente, a filha dá à luz a outra criança, e assim por diante.
Uma protege a outra.
Voltando à explicação da pedagoga, cujo nome não consigo encontrar nas minhas anotações, um indivíduo nasce protegido por uma primeira malha, que representa a sua própria constituição genética, biológica e outras. Se há falhas, rupturas nesta malha, o indivíduo é amparado por outra, que é a família, responsável pela proteção, acolhimento, redirecionamento e referência. Mas, em tendo alguma lacuna aí também, outra malha serve para acolher o indivíduo: a escola, que ensina conteúdos, amplia perspectivas, trabalhavalores e referências com crianças e adolescentes.
Porém, ainda assim, se houver algum buraco nessa etapa, o indivíduo cai no coletivo, na sociedade, podendo ser amparado pelos grupos de amigos, religiosos, de trabalho, dentre outros. A ruptura desta malha projeta o indivíduo para a vala da “marginalidade”, tendo que ser acionada uma malha subsequente, que é a da justiça.
Somada a esta teoria, há diversos estudos da neurociência demonstrando que a falta de carinho e os traumas na infância podem impedir que algumas atividades cerebrais sejam acessadas, comprometendo áreas importantes como a do pensamento, julgamento, ideia de consequência e moral.
Uma criança vinda de uma gravidez conturbada e que cresce num lar onde há negligência, abandono, violência, drogatização e abusos tem sua formação de personalidade impactada. Mas ainda há outros fatores que nos diferem uns dos outros e são responsáveis, em parte, pelo contraponto a uma afirmação comumente feita por alguns: mas eu também sou da periferia e nunca me envolvi com “coisa ruim”. A reação emocional das pessoas a eventos similares depende de fatores ambientais, genéticos, biológicos, mentais, sociais e por aí vai. “Mas porque filhos da mesma família têm personalidades tão distintas?” Justamente por isso, por eles serem distintos. A produção, neste caso, não se dá em massa.
Muitos daqueles meninos e meninas que me ouviam naquele lugar cresceram vendo o pai bater na mãe, a mãe se prostituir, sofrendo abusos sexuais e psicológicos, o álcool e outras drogas sendo usados e incentivados.
Ou que tinham uma mãe amável, mas que precisa trabalhar e, por isso, se ausentava, deixando os filhos cada dia com uma pessoa disponível.
Vitimização não ajuda ninguém. Vitimizar é afundar atado a uma âncora. Mas, há de se reconhecer nas pessoas as vulnerabilidades, as fraquezas – que a gente precisa, inclusive, parar de demonizá-las e passar a entendê-las. Cada pessoa é uma história de vida que nós todos não vamos viver. Querer que um indivíduo tenha a mesma reação que eu teria diante de determinadas situações é fazer com que todas as bonecas russas sejam iguais. E, aí, acaba a tradição, já que uma boneca não “suportaria” a outra.
Palestrante, professor e criador do movimento vonluntário Tio Flávio Cultural