Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Não há romantismo na miséria

Tio Flávio*
21/04/2023 às 07:32.
Atualizado em 21/04/2023 às 07:36

A fila já estava bem grande, mesmo antes dos voluntários descarregarem o que seria distribuído naquele dia. Muita gente com sacolas numa das mãos e os filhos na outra. Muitos meninos, inocentes, sem saber do que se tratava, brincavam com os outros naquela rua de terra, com o esgoto correndo logo adiante.

O sol já castigava, mas ninguém arredava o pé dali. Aquele carro imenso tem sua porta traseira aberta e de lá se avistam várias frutas e verduras, que por alguma coisinha boba não serve mais para as bancas dos sacolões e supermercados, mas que ali, naquela comunidade, era o almoço e jantar de alguns dias.

Mais à frente, dois carros grandes, que escoltavam aquela van, experimentavam a vermelhidão do local. Poeira pelos vidros, secura no ar. De lá descem pessoas que iriam ajudar na distribuição das frutas e verduras para aquelas famílias de uma belo horizonte diferente dentro da mesma Belo Horizonte.

Os voluntários na van, já acostumados com aquele tipo de ação, organizavam a fila, com a ajuda dos próprios moradores, que até xingavam quem ousasse passar na frente, afinal, todos precisavam daquelas doações.

Os convidados endinheirados que desceram dos carrões agora empoeirados são bem-vindos, sempre, quando o objetivo é ajudar, escutar, estender a mão, abraçar, brincar com as crianças, sem olhar de superioridade ou arrogância. E várias vezes isso acontece, de meninos de escolas particulares irem conhecer realidades diferentes das que estão habituados, numa forma didática de conhecer a vida e suas nuances.

Sei que alguns voluntários interpretam aquele tipo de atividade como algo que os relembra que são humanos ao tocarem outra alma também humana, como dizia Jung. Mas, nem sempre as intenções são as mesmas. No Bardo Thodol, o livro tibetano dos mortos, há uma parte que diz que o que mais vale após a morte não é saber aquilo tudo que você fez em vida, mas qual era a intenção de ter feito aquilo tudo. Assim, sabemos que há gente que vai a uma ação social para amenizar suas culpas ou esconder dos seus próprios problemas, outros para olharem pela vitrine da miséria, outros tantos para se sentirem bem pelo que têm, já que tantos supostamente não têm nada.

Há os voluntários que já entenderam aquilo que falou a Miep Gies, senhora que abrigou a família da Anne Frank da perseguição nazista, quando perguntada do porquê que ela colocou em risco a sua vida para salvar uma família de judeus, sendo a resposta certeira: “Não fiz nada demais. Fiz o que tinha que ser feito”.

Quando falo isso é para ressaltar que na atividade social não há distinção de voluntário endinheirado ou endividado. Todos ali estão pela intenção de se desenvolverem como pessoas e de se doarem ao outro, entendendo isso como algo que faz parte da sua vida, como o “simples” ato de respirar, que fazemos sem percebê-lo, mas que na falta, tudo é impactado.

Ao entregarem as doações, o que se ouvia de agradecimento sempre comovia a todos: “Deus te pague”, “Deus que dê em dobro”, “Deus que não deixe faltar para você e sua família” eram falas marcantes, mas impactantes eram as que vinham com um tanto de dor e choro junto: “Isso é coisa de Deus, pois eu não tinha é nada pra dar pros meus filhos”, “Minha geladeira tá vazia, orei tanto a Deus ontem para ele mandar uma solução. Vocês são anjos mesmo”.

As doações, dadas pelo programa Mesa Brasil, do Sesc-MG, chegam para as instituições sociais cadastradas, que fazem o trabalho de distribuição nas comunidades que estas ONGs atendem.

No fim de tudo, já na porta do carrão, um voluntário que tinha ido conhecer, pois queria ser doador frequente, disse que estava comovido com o tamanho do trabalho daquela ONG, mas que preferia doar seu dinheiro para outro tipo de ação, que as pessoas precisassem mais, pois ali ele tinha visto que há muita gente que tem uma “certa condição”, pois a maioria tinha celular e levava-o à mão. “Eu queria doar mesmo é pra quem precisa de fato”, arrematou aquele visitante, “estrangeiro”, como diria Albert Camus, em territórios de miséria.

Sem esperar, titubear e nem com medo de perder um possível voluntário e doador, a organizadora daquela ação disse-lhe: “Você sabia que muitos deles conseguem um trabalho de manicure, faxina, auxiliar de construção, carregador com este celular que fica em boa parte do tempo, sem créditos para ligação?

Você sabia que sem este celular, uma filha não conversa com a mãe que tá doente, não consegue manter um vínculo com os seus irmãos de crença religiosa e nem ter acesso a alguns benefícios do governo? Você sabia que este celular não é luxo para muita gente, mas extrema necessidade?”. Não convencido, pois não faz parte do seu contexto, o homem reafirma que quer ajudar, mas a quem precisa mais do que aqueles que estão ali.

Não há como não lembrar, num momento desses, dos Titãs cantando em nossa mente: “miséria é miséria em qualquer canto. Riquezas são diferentes”.

Palestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural

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