Lembro que acompanhava as notícias da epidemia da Covid-19, antes mesmo que fosse declarada como pandemia pelos órgãos competentes, e ficava assustado com os relatos vindos da Itália, de idosos mortos, sendo transportados em caminhões, sem espaço em necrotérios e sendo enterrados sem a presença dos familiares. O sofrimento era visível, sentia daqui a dor que as imagens transmitiam, mas sei que é bem distante da dor imensa de quem estava lá e vivenciava aquela situação, chorando seus mortos.
A tragédia televisionada impacta, dá uma ideia do ocorrido, mas a gente nunca vai saber de fato o que as pessoas passam ali, sem estarmos lá.
Quando começaram as notícias sobre as chuvas e enchentes do Rio Grande do Sul, o susto invadiu os lares distantes, comoveu muita gente que, solidário, não pensou duas vezes em buscar instituições sérias para enviar uma ajuda, seja via transferência bancária ou desfazendo dos itens pessoais para o envio à população atingida, que além das águas que invadiram suas casas, levando bens materiais, pessoas amadas, memórias impregnadas em cada canto daquelas residências e ruas, ainda viria sofrer, em menos de uma semana, a chegada de uma frente fria, mais chuva e um terremoto.
Um luto que alguns terão que adiar, pois ainda estão desabrigados, sobrevivendo.
Mandei mensagem para uma prima que mora em Cachoeirinha, na Grande Porto Alegre, que me relatou o que eles passaram, num sotaque gaúcho forte, mesclado a uma voz sofrida. A sua casa não foi atingida. Da irmã, sim. Mesmo assim, eles estavam sem energia elétrica, sem internet e sem água potável. Os supermercados vendem água em quantidade limitada. Só de ouvir isso já é uma dor, pensar que com tanta água, as pessoas padeciam também de sede.
“A situação está tão triste, bah”, disse minha prima.
Em poucas horas vimos a solidariedade dos brasileiros, que montaram frentes de arrecadação em lojas, shoppings, aeroportos, correios. Um povo já testado por tragédias naturais, porém jamais acostumado e acomodado.
Em situações de comoção pública, temos o primeiro momento, em que a dor do outro invade cada lar, passando por cima das nossas próprias dores, que coexistem, mas adiam a ardência para dar espaço a uma catástrofe. A dor do outro agora é minha, é nossa também. Com o passar do tempo as doações esfriam, caem, pois os primeiros dias foram intensos, mas as urgências individuais também fazem com que cada um vá seguindo sua própria vida, “reassumindo” suas lutas.
Para quem é vítima, fica o vazio, doenças vindas do contato com a água contaminada, dor das perdas de pessoas e dúvidas, por não poderem voltar para casa e não saberem para onde ir. Ficam os traumas, que insistem e persistem em deixar frágil e adoecida a nossa mente, que em meio àqueles colchões espalhados pelo chão de ginásios, em abrigos improvisados, reluta entre angústia, culpa, apreensão e mais dúvidas.
O cenário ainda foi agravado quando 47 pessoas foram presas cometendo assédios e violências sexuais dentro do espaço criado para proteger quem já tinha sido devastado. E por pior que o cenário pareça, ainda tem uma pitada sórdida ao ser revelado que a maioria das pessoas já eram vítimas em casa, num comportamento que apenas se repetia fora das residências, revelando casos de violência doméstica mais frequentes do que se possa imaginar um telespectador desavisado que liga a tevê para se informar.
De Minas Gerais foram Bombeiros e Policiais Militares; profissionais da Copasa chegaram imediatamente após o início da tragédia; um grupo de resgate animal, coordenado pelo professor Aldair Pinto, da medicina veterinária, ainda está lá; um grupo de resgate humanitário, a Hummus, que tem o capitão Leo Farah dentre os voluntários, não descansa; o jornalista que cobre pautas sobre Direitos Humanos, Leandro Barbosa, com experiência em áreas de risco, também continua ajudando por lá.
Alguns influenciadores ajudando, ou atrapalhando, como podem, também são um capítulo a ser contado, junto à disseminação vil e desumana de notícias falsas, que só atravancam a ajuda de chegar. Laerte, cartunista, traduziu isso num desenho: pessoas soltando cobras dentro das águas da cidade.
Lembro muito do livro do Saramago, “Ensaios sobre a cegueira “, em que após uma cegueira viral atingir quase toda a população, levando-a a segregações, disputa por alimentos, medo da contaminação, a tal doença é curada, depois de muita dor. O autor, que teve esta obra levada às telas de cinema, deixa aberta uma reflexão: depois de tanto desespero, a desgraça ensinou algo? Entendo que tentar achar ensinamento em dor, pode doer mais, mas, se houver nela alguma mensagem, não seria interessante ouvi-la?