Eu li a poesia “O bicho”, do Manuel Bandeira, ainda na escola, quando era adolescente. Ela me incomodou muito, a ponto de não conseguir tirá-la da minha mente. Talvez eu tenha criado e registrado aquela cena na minha memória, pois assemelhava-se a uma cena de filme, algo que só a ficção tem condições de criar.
Um bicho que catava comida entre os detritos. Faminto, quando achava alguma coisa, não examinava e nem cheirava, já engolia com voracidade. De longe, alguém observava o aspecto animalesco, não de um cão, um gato ou um rato, mas de um homem, desesperado pela fome, que achava um pedaço de algo em meio ao que a sociedade já havia descartado. Uma pessoa, não um rato, mas que a sociedade também já havia descartado. E quando falo assim, não estou trazendo a culpa para mim ou para você, mas o alerta de que estas cenas são cotidianas, que podem assustar num primeiro momento, mas ao acontecerem com frequência, se tornam normais.
“Mas está na rua quem quer” ou “eles não saem porque não querem”, sugeria a primeira-dama de um grande estado brasileiro, talvez por ter um conhecimento raso e limitado da vida fora dos condomínios. E olha que não estou criticando quem mora nos condomínios, mas quem acredita que o mundo se resuma àquilo ali.
O filme “Filhos de Istambul” se passa na Turquia e apresenta uma realidade de meninos órfãos que são adotados pelas ruas, carregando seus poucos pertences em mochilas e suas dores e traumas na mente. Uma coletânea de histórias que se passam tão longe do nosso país, mas que representam o que acontece aqui, ao lado da minha casa, do seu trabalho.
O cinema consegue, com tamanha força, nos sensibilizar e informar, nos levar para mundos que existem além dos muros e das cercas que buscam nos proteger. É o que acontece também na série Segunda Chamada, que retrata a vida de personagens diversos - embora ficcionais, são tão reais – dentro das salas de aula de uma escola, batizada com o nome da mineira Carolina Maria de Jesus.
Na segunda temporada da série, um grupo de pessoas que vive debaixo de um elevado, na cidade de São Paulo, é convidado a frequentar as aulas do EJA – Educação de Jovens e Adultos – daquela escola. Cada novo aluno daquele grupo chega carregado das histórias que os impulsionou para a rua: perdas, preconceitos, violência doméstica, abandono.
Carolina Maria de Jesus, a mineira, catadora de recicláveis, favelada, que a série homenageou dando o seu nome à escola, tem uma fala potente ao perguntar: “E haverá espetáculo mais lindo do que ter o que comer?”
- “Ah, mas essas ONGs aí entregam comida todos os dias, mas os vagabundos até jogam fora”, dizem alguns que, como a tal primeira-dama, devem acreditar que os problemas sociais estão todos à nossa vista, esparramados pelas ruas.
Há os problemas que vemos, mas não achamos problema, porque não são nossos, hipoteticamente. Há os que a gente de fato não considera problema; há os que a gente vê e fica indignado; há aqueles que a gente vê e faz alguma coisa que está ao nosso alcance. E há problemas que são invisibilizados. Sim, a gente não os considera porque nem sabe que existam. O suicídio entre idosos é um exemplo desses: motivados pelo abandono, solidão ou outras questões, idosos não têm necessariamente que possuir uma arma para seu autoextermínio, mas os próprios medicamentos que aumentados ou combinados aleatoriamente por eles, levam ao término de sua vida. E mais: crianças de até 13 anos de idade que são violentadas pelos seus próprios companheiros. É isso mesmo que você leu e que está no Anuário da Segurança Pública 2023.
A romantização da adoção e a quantidade de crianças adotadas e devolvidas pelas famílias; a ignorância ou o preconceito da sociedade em relação às famílias atípicas; o sofrimento solitário de mães em conflito com a maternidade; o complexo problema dos vícios que está nas ruas, mas também se esconde em casa; crianças e adolescentes a que o pesquisador Hugo Monteiro denominou de “A geração do quarto”; falta de saneamento, de acesso à água e à saúde. Fome.
As falas de que “fez porque quis” ou “está lá porque quer” só servem para justificar uma responsabilidade que as pessoas não veem como sua. Mas, como dizia Confúcio: se o indivíduo vai mal, a família vai mal. E se a família vai mal, o condado vai mal. E aí não está nada bem. Assim, vejo que a melhor cidadania é entender o nosso papel nessa teia social, inclusive reconhecendo o que é dever do próprio Estado, para que não venhamos a assumir suas lacunas, acostumando-o à inércia.
O livro “Escassez”, do Eldar Shafir e Sendhil Mullainathan, vale bastante a leitura, pois nos instiga a pensar não só o problema, mas suas raízes. Uma sociedade que criminaliza o assistencialismo, sem entender que é preciso enxugar o chão, já que a poça de água provocada pela chuva pode machucar alguém. Com isso não estamos desconsiderando, de maneira alguma, a importância de ir ao teto para consertar a goteira.