Já nos primeiros anúncios dos contágios pelo vírus da Covid-19 no Brasil, minha mãe, uma idosa bem disciplinada e valorosa da vida que tem, resolveu entrar em isolamento. Mudou sua rotina, suspendeu alguns serviços que dependiam da interação com outras pessoas, adotou a higienização de produtos que vinham da farmácia e supermercados e dispensou a visita dos filhos.
Intensificamos as ligações diárias para estar próximos e, também, acompanhá-la, uma vez que ela tem 84 anos, é hipertensa e diabética, mas insiste em morar sozinha. Como ela é bem independente e lúcida, temos respeitado a sua vontade.
Foram praticamente nove meses de isolamento em que ela viu os desafios do mundo virtual baterem à sua porta: migrou das reuniões presenciais da fraternidade espírita para sessões digitais em aplicativos e plataformas; intensificou o uso do computador e do celular, para pagar contas, estudar os temas abordados em suas reuniões espíritas, fazer ações voluntárias virtuais, dentre outras novidades que teve que se adequar.
Tinha um ou outro dia que ela sentia muita saudade, apesar das conversas em chamada de vídeo com os netos. Mas sua saúde mental estava ótima, sem desânimo e bem persistente.
Perguntei a ela por que estava tão “radical” em seus cuidados e ela falou que “não quero morrer, não”. Se pânico nos causou instabilidades e dúvidas, imagina no grupo a que todos chamam de “risco”. A contaminação pela doença era a sua própria sentença de morte.
O tempo foi passando e recentemente ela começou a sentir algumas dores e, num exame coletado em casa, descobriu uma infecção urinária. Agora já era a hora de quebrar o isolamento e ir aos médicos. Foi isso que ela fez: agendou as consultas e os exames laboratoriais.
Na segunda semana em que saiu de casa, começou a ter sintomas de tonteira, desânimo, cansaço. Pensamos que a medicação nova, da nova geriatra, deveria provocar tais alterações, que seriam normalizadas adiante.
Como o seu estado de saúde debilitada foi persistindo, meu irmão tomou a iniciativa de levá-la para fazer um exame da Covid, que se revelou positivo. Nesse momento nós todos ficamos preocupados, receosos, com muito medo. Ficamos realmente sem chão. Ela, numa mensagem no grupo da família, foi prática e direta: “testei positivo para Covid”
O único filho que teve o vírus foi ficar com ela, tomando as devidas precauções, e cada turno do dia, cada dia, foi de muita infinita ansiedade. O raio-x do pulmão revelou estar bem limpinho, o que deu um respiro para todos nós, mas os sintomas de cansaço e desânimo e as medições de pressão e glicemia bem variáveis nos preocuparam. O que nos deixou felizes foi a força dela: “eu vou sair dessa, ainda não é a minha hora, eu sinto isso”.
Não fazíamos ligações mais para ela para poupá-la de falar. Dia após dia, até chegar hoje, no décimo-quinto dia. Ainda se recuperando, mas confiante, fazendo tudo que seus médicos mandam e obedecendo fielmente aos “comandos” do meu irmão, ela se recupera.
No dia 2 de dezembro vai comemorar 85 anos de idade. Mandei a mensagem de uma amiga que dizia para “ela ficar boa logo para a festa” e a resposta foi das melhores: “este ano não tem festa, não. Agora só no ano que vem”.
No mês de dezembro geralmente os grupos sociais se organizam para fazerem ações voluntárias, mesmo que virtuais, nos asilos, uma vez que cresce a angústia dos idosos, pela simbologia da festividade, mas mais pelo abandono e solidão.
Seria muito bom se cada um de nós, da melhor forma possível, conseguisse despertar num idoso em abandono o sentido de acreditar “num ano que vem”.