Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

O nascer da esperança

Publicado em 27/12/2024 às 06:00.

Tio Flávio*

Todos os anos, na noite de 24 de dezembro, um gesto de solidariedade e amor ao próximo ilumina a vida de 200 pessoas em situação de rua que frequentam diariamente um albergue público e, também, de voluntários que se unem para que o evento dessa noite seja possível. 

A ação é promovida por um grupo de projetos sociais e amigos que se reúne para transformar o Natal dessas pessoas em uma experiência de acolhimento e esperança. Coordenada pelo Gada Santa Luzia, Tio Flávio Cultural, Comida que Abraça e Sol e Neve Jaraguá, a celebração conta ainda com a colaboração indispensável de Renata Fortunato, que cuida com carinho da decoração, das doadoras do Duas Mães e um Menino, que garantem os refrigerantes, dos músicos voluntários do grupo Oi de Gato e de O Candiá Bar, que gentilmente cede o espaço do bar para que, todos os anos, vários profissionais subam ao palco e façam um show beneficente, em dezembro, com a arrecadação destinada a alguns projetos sociais. Com muita honra e responsabilidade, o Natal no albergue foi acolhido pela segunda vez consecutiva. 

A festa é marcada por um ambiente acolhedor, decorado com balões e enfeites que trazem o espírito natalino para o coração daqueles que, na maioria das vezes, se sentem à margem da sociedade e que, com frequência, são de fato “marginalizados”: pelo sistema, por governos e governantes e por nós, sociedade. A noite especial inclui a entrega de kits de higiene pessoal, que vêm acomodados em uma mochilinha de alça, e um kit de guloseimas, além de um jantar digno, que é encerrado com picolés fornecidos pela Sol e Neve Jaraguá. A música ao vivo, interpretada com entusiasmo pelos voluntários, embala momentos de alegria e emociona os presentes, criando um clima de confraternização e esperança. 

Entre as histórias que ouvimos em cada ano que passamos juntos, está a de Ricardo (nome fictício), um jovem que, devido à dependência química, saiu de casa e deixou para trás sua família em outro estado. Este foi o primeiro Natal que ele passou nas ruas, em uma capital desconhecida. Ele confessou que a rua amedronta, mas as pessoas se acostumam. O que dói de verdade é a dura realidade da saudade de quem deixou em casa, por ter quebrado a confiança de todos e não conseguir ficar sóbrio para cuidar da mãe, idosa, em vez de dar-lhe tantas desilusões. Assim como muitos que saem de casa, a promessa da volta é o que os mantém no caminho. 

Ricardo ainda não se sente pronto para voltar, mas a celebração dessa noite deu a ele um vislumbre de que, mesmo nas situações mais desafiadoras, é possível encontrar acolhimento e um pouco de alegria. Sentado em um canto, ele observava a festa com os olhos brilhando, como se tentasse capturar cada detalhe daquela noite mágica. “Faz tempo que não me sentia assim, como se ainda houvesse um lugar para mim neste mundo”, ele confidenciou a um dos voluntários, pedindo para que agradecesse a todo mundo que ajudou: “Não esquece, não. Fala para todos como isso é grande para cada um de nós”.

Outra história que tocou os corações foi a de Seu José (nome fictício), um homem de 58 anos que, sem esperanças, havia decidido passar o Natal dormindo no abrigo para tentar esquecer as dores da vida. Quando chegou e se deparou com a festa, inicialmente hesitou em participar. O brilho dos pisca-piscas, o aroma e o clima festivo do jantar e o som da música pareciam distantes de sua realidade. No entanto, ao ser abordado por um voluntário que o convidou com um sorriso caloroso, ele aceitou entrar no salão e por ali ficar. Durante a festa, Seu José recebeu um kit de higiene e provou um jantar que o fez lembrar das noites em família, algo que ele não vivia há muitos anos. Isso podia fazê-lo ficar triste, pois, depois que perdeu a esposa, ele não conseguia mais viver a culpa no meio de tudo que lembrava aquela mulher, que foi sua companheira por quase três décadas. Ao final da noite, emocionado, ele agradeceu a todos e disse: “Hoje eu senti que Deus ainda olha por mim. Vocês trouxeram de volta um pouco de esperança para o meu coração”. 

A iniciativa é uma demonstração viva de que a solidariedade tem o poder de transformar momentos e lembranças. Cada pessoa envolvida na organização, cada sorriso compartilhado e cada gesto de carinho reforçam a importância de olhar para o outro com humanidade. Para muitos que participaram, essa noite não foi apenas uma festa de Natal, mas uma oportunidade de sentir-se parte de algo maior. 

Assim, ano após ano, essa celebração vai muito além de uma simples festa. Ela simboliza a crença em um recomeço, uma fagulha de esperança em meio às dificuldades e uma demonstração clara de solidariedade, pois, como foi dito por uma assistida: “Quem vem na noite de Natal passar umas horas com gente que nem conhece, deixando suas famílias em casa, todo mundo se preparando para a festa, jantar, troca de presentes? Só quem é de Deus mesmo. Saindo daqui, quero ser voluntária para devolver tudo isso que vocês dão para tanta gente”. E não é isso o Natal: nascer da esperança?

* Palestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural

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