- Nós podemos fazer um bingo para as idosas que vivem aí no Lar das Cegas?
Esta foi a pergunta que fiz para a assistente social de uma instituição em Belo Horizonte que abriga idosas cegas, dando moradia, alimentação, segurança, ensino, afeto.
A resposta veio rápido:
- Claro, elas adoram.
Assim, combinamos de levar no mínimo onze voluntários, para que cada um pudesse auxiliar uma das moradoras. Conseguimos a doação de muitas prendas e os voluntários juntariam para fazer uma mesa farta para um café da tarde.
Bem próximo ao dia do evento, que seria num sábado, a assistente social me manda uma mensagem perguntando se poderia convidar mais algumas pessoas, cegas também, mas que não eram da casa e se a cartela do bingo poderia ser em braile. Eu nem sabia que existia uma cartela de bingo nesse sistema de escrita tátil, usado por pessoas cegas ou de baixa visão.
Combinamos, então, da instituição conseguir as cartelas. Nesse momento foi que “a ficha caiu”: mesmo bem-intencionados, sem pensar e nem querer ofender ninguém, nós imaginamos uma ação em que as idosas teriam que depender da gente para tudo. Elas não teriam condições de marcar a cartela e os nossos gentis voluntários fariam isso, com maior carinho.
Porém, olha que legal: elas podem marcar por si próprias, reforçando a sua independência e autonomia. Estaríamos ali, como parceiros que somos, para vibrar com elas e fazer companhia.
Chegando na instituição, a mesa da sala foi posta com os brindes e lá na cozinha, o lanche foi se acumulando com bolos, biscoitos, pães de queijo, sucos.
Com todas animadas, um dos nossos voluntários distribuiu os demais para que cada idosa pudesse ficar acompanhada e começou a cantar as pedras. Este foi o momento do choque de realidade e de um desconforto sem igual: ao falar um número, os dedos das idosas corriam apressadamente pela cartela e encontravam – ou não – o que buscavam. Os voluntários eram um apêndice, pois eles estavam focados em ajudar a marcar as cartelas e perceberam que não seriam úteis. Não da forma que se prepararam.
Minutos depois nossos voluntários entenderam: se tivéssemos levado as nossas cartelas, compradas nas papelarias ou bancas de revistas, seriam as idosas cegas, foco da nossa ação, que ficariam perdidas. Nós as levaríamos, sem empatia, para o mundo que conhecemos, desconhecido delas. Elas iam precisar de alguém que procurasse os números e anunciassem quando eles estavam ali ou não.
Nós, voluntários, fomos convidados a conhecer um novo mundo, a aprender com o desconhecido, a descortinar novos conceitos.
Após a tensão inicial, tudo virou festa. Todas ganharam prêmios, às vezes mais que um, e se divertiram demais.
Ao encerrar a ação, uma delas pediu para nos fazer um agradecimento. Sentou-se à frente de um piano e tocou, lindamente, algumas canções em nossa homenagem. Ao encostar nas teclas do piano ela não estava ali, sentada numa banqueta. Ela voava, nos sobrevoava.
Se o sentido do Natal pode ser traduzido, grosso modo, pelo nascer de uma criança, que a gente entenda que a cada novo aprendizado, a cada passo dado, em cada momento que avançamos na nossa caminhada, nos esperados ou inesperados instantes em que vivemos, estamos nascendo para algo, ampliando as nossas perspectivas, mudando a nossa maneira de ver e fazer as coisas, de lidar com a vida.
Aquela visita a um lar de idosas cegas foi um natal para todos nós. Um feliz Natal para todos nós.