Tio Flávio*
O meu pai era nordestino, de União dos Palmares, em Alagoas. Mas isso não é o mais importante aqui. O fato é que sendo ou não descendente de nordestinos, deveria doer em qualquer ser humano tomar conhecimento de uma manifestação criminosa, por parte de qualquer pessoa, ainda mais uma advogada que até então ocupava a vice-presidência da Comissão da Mulher de uma instituição tão séria como a OAB/MG, tendo ela solicitado afastamento do cargo na subseção de Uberlândia em decorrência da repercussão do vídeo que gravou e publicou, juntamente a outras duas mulheres, com ofensas ao povo nordestino.
É com muita tristeza que vejo a pobreza de algumas pessoas, ignorantes e soberbas, egoístas e vis, que se referem a um outro ser humano, ou a uma região do país ou do mundo, com um ar de superioridade que apenas escancara sua pequenez. A advogada afirma em sua publicação que o Nordeste vive das suas migalhas.
Talvez a “nobre” “doutora” seja tão limitada, que acredite mesmo ser o Nordeste feito só de praias e belezas da natureza. Talvez ela desconheça que riqueza de verdade vive e se faz presente na história de tanta gente, que chora choro amargo, mas que também ri riso contente.
E como presente à doutora, deixo que Gonçalves Dias, nordestino do Maranhão, explique, se ela puder entender: “Não chores, meu filho; não chores, que a vida é luta renhida: viver é lutar. A vida é combate, que os fracos abate, que os fortes, os bravos só pode exaltar”.
Agora, em se tratando de um membro que compunha, dentro da OAB/MG, a comissão destinada aos direitos das mulheres, talvez devesse a nobre advogada pesquisar algumas nordestinas, como assim fez Constância Lima Duarte, professora com pós-doutorados na área de Linguística, que junto a outras pesquisadoras publicou uma obra em três volumes intitulados “Escritoras brasileiras do Século XIX”, pela Editora Mulheres.
Em artigo publicado na Revista Estudos Linguísticos e Literários, vinculada aos programas de pós-graduação em Língua e Cultura (PPGLinC) e Literatura e Cultura (PPGLitCult) da UFBA, Constância Lima Duarte conta que dedicou-se à pesquisa das escritoras nordestinas, “como as cearenses Emília Freitas (1855-1908), autora, dentre outros, do interessante romance “A rainha do ignoto”, de 1899, que conta a história de uma sociedade secreta de mulheres liderada por uma misteriosa rainha; por Alba Valdez (1874-1962), jornalista, ficcionista e memorialista, fundadora da Liga Feminista Cearense, em 1904, a primeira agremiação literária de mulheres no Estado; por Serafina Rosa Pontes (1850-1923), hoje nome de município, autora de poemas melancólicos que se encontram reunidos no Livro da alma, de 1894. Também de Ana Facó (1855- 1922), que dirigiu o primeiro grupo escolar de Fortaleza, poetisa inspirada, dramaturga e autora dos romances Rapto jocoso e Nuvens; e Ana Nogueira Batista (1870-1964), poetisa e tradutora, colaboradora incansável em jornais e revistas do Ceará, Pará, Amazonas, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo.
Mas, se ainda for pouco, a professora Constância pesquisou também “a versátil maranhense Mariana Luz (1879-1960), afrodescendente, professora responsável pela criação de escolas, participante ativa dos principais acontecimentos históricos, sociais e culturais do Maranhão de seu tempo (...) E a norte-rio-grandense Nísia Floresta (1810-1885), autora de 15 títulos, entre romances, poesia, crônicas e ensaios, escritos em português, francês, italiano e inglês, pois residiu parte de sua vida na Europa. Seu primeiro livro, Direitos das mulheres e injustiça dos homens, de 1832, deu a ela o título de pioneira do nosso feminismo. Segundo Nísia, os homens estavam tão acostumados a verem as mulheres recolhidas em sua ignorância, que não eram capazes de imaginá-las numa situação diferente. E denuncia assim o círculo vicioso que impossibilitava as mulheres de romperem a dependência: “Por que a ciência nos é inútil? Porque somos excluídas dos cargos públicos; e por que somos excluídas dos cargos públicos? Porque não temos ciência” (FLORESTA, 1989,p. 52). Simples assim. E também outras norte-rio-grandenses, como Auta de Souza (1876-1901), que faleceu muito jovem e cujo único livro, Horto, ganhou prefácio elogioso de Olavo Bilac; Sinhazinha Wanderley (1876-1954), que além de fazer poemas e hinos, escreveu sobre o folclore e livros dedicados às crianças. Adelle de Oliveira (1884-1969) e Izabel Gondim (1839-1933), que nos legaram sensíveis obras poéticas; e ainda as poetisas Carolina (1891-1975) e Palmira Wanderley (1894-1978), responsáveis pela primeira revista feminina de Natal, Via-Láctea. Sobre Palmira Wanderley, autora dos poemas reunidos em Esmeraldas (1918) e Roseira brava (1929).
Mas, se ainda assim for pouco, Câmara Cascudo, nordestino do Rio Grande do Norte, pode lembrar à “doutora” o seu nobre lugar: “Eu sou apenas uma célula, uma pequenina célula que procura ser útil na fidelidade da função”.