Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

O ponto de partida

16/07/2020 às 19:32.
Atualizado em 27/10/2021 às 04:03

Os voluntários sempre ficam bem ansiosos com a chegada do dia de ação nas casas de acolhimento de crianças e adolescentes, já que tudo para aquele momento foi discutido anteriormente num grupo virtual, a atividade planejada e as abordagens alinhadas com todos, para que a gente possa respeitar a individualidade, a história de cada um que encontrarmos.

É muito comum que numa primeira visita de um novo voluntário, ele chame um educador, funcionário que trabalha no abrigo, e pergunte com espanto: “mas o que aconteceu com essa criança, porque ela veio parar aqui ?”. Essas histórias quem deve saber são os próprios técnicos da casa, que atuam diariamente com os acolhidos e buscarão a melhor forma de abordagem para cada pessoa que ali se encontra.

Muitas vezes, no calor da hora, afetados pelo momento, alguns prometem voltar, o que incentivamos, já que os nossos grupos são de ação contínua e buscamos sempre voluntários que queiram assumir um compromisso e não apenas ir a uma visita, mas pedimos que promessa nenhuma seja feita, por mais que seja real e possível de ser cumprida. As expectativas que podemos criar em alguém, assim como a euforia ou a frustração, nos pedem cautela. 

Outros "confidenciam em público"  que querem apadrinhar uma criança ou adotar um acolhido e, em Minas Gerais, o caminho mais correto é buscar a orientação no Centro de Voluntariado de Apoio ao Menor – Cevam, também sem promessas verbalizadas.

 Orientamos sempre que os aparelhos de celular fiquem nos bolsos ou bolsas, não só para evitar a foto das crianças e adolescentes, que em abrigamento não podem ter seus rostos expostos, mas para que aquele momento que estamos ali, com eles, seja para conversar, interagir, criar vínculos. Como diz Ricardo Reis, heterônimo do Fernando Pessoa: “para ser grande, sê inteiro”.

Uma frustração do voluntário é quando chega à instituição e há poucos acolhidos no dia, por motivos diversos: uns foram ao médico, outros para casa de padrinhos, outros numa reaproximação familiar. Um dia li uma frase que me marcou: “abrigo não é lugar para ninguém viver”. Por mais que precisemos ter casas que amparem e cuidem dessas pessoas até voltarem para os seus lares, para novos lares ou alcançarem a sua maioridade, deve-nos provocar felicidade ver os abrigos vazios por falta de demanda ou por uma busca da sociedade por apadrinhamentos afetivos e adoções.

As ações para os adolescentes são as mais desafiadoras, uma vez que há um momento em que o tempo vivido nos abrigos pesa para muitos deles, a aproximação da maioridade os aflige e as incertezas ficam ainda mais amplificadas. Mas é com eles, também, que vêm grandes aprendizados. Muitos meninos e meninas se protegem, se fecham, por mais que queiram participar de uma atividade, se afastam. Várias vezes temos que adaptar as ações para o momento, usando a criatividade de repensar o que estava prontinho para a execução.

Mas o mais certo é que ali, diante de nós e em nós mesmos, o que se tem são indivíduos, cheios de anseios, angústias, alegrias, esperanças, tristezas. Ao conquistar a confiança, talvez a gente conheça outra pessoa, bem diferente e que nos surpreenderá bastante. 

O VJ, iniciais do nome de um adolescente de 17 anos que mora na Casa dos Meninos, em BH, usa a poesia para falar aquilo que ele viveu e carrega em si. Apesar de novo, a vida já lhe apresentou diversas faces. Ele se fortalece na fé, como escreveu em sua poesia, para tomar os melhores caminhos.

“Sofrimento já tivemos, mas aprendemos que a fé nos mantém vivos. Não só a fé em Jesus Cristo, mas também nos que caminham comigo”. E mesmo que dúvidas povoem a cabeça de alguns, sejam adolescentes ou voluntários, seja instituição ou sociedade em geral, em outra poesia, VJ nos dá o recado: “(...) a diferença se faz em cada vida, seja o ponto de partida, para aqueles que a luz ainda está escondida”.

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