Ela estava bem quietinha no meio dos outros. Só chamou muito a atenção pelo fato de estar com uma blusa de frio numa sala bem quente, além de assistir à minha palestra de capuz, sentada como um caracol, tentando esconder-se em si mesma.
No final da minha fala, ela esperou que todos me cumprimentassem e, depois, chegou perto de mim, pediu para falar comigo e levantou a manga da sua blusa. Eu olhei aquele braço todo cortado, com muitas cicatrizes. Ela levantou a outra manga, que estava da mesma maneira.
Assustado, eu perguntei o que estava acontecendo, tentando entender por que ela tinha tentado se matar tantas vezes.
Não me lembro mais do seu rosto, mas a resposta que ela me deu não sai da minha mente. Aquela adolescente me disse: “você acha mesmo que eu tentei me matar? Eu faço isso porque não dou conta de tanta dor”. Aí ela já completou: “eu tento passar para cá (ela bate com a mão em um dos braços) a dor que eu sinto aqui (agora ela leva sua mão ao seu peito)”.
Na hora eu não consegui pensar em nada, pois a fala daquela adolescente era a coisa mais sincera que eu tinha escutado nos últimos tempos. Pensei em falar com a psicóloga da escola sobre o seu caso, o que fiz em seguida, mas naquele momento a única reação que tive foi perguntar-lhe: “posso te dar um abraço?”.
O poeta Zack Magiezi diz que “há braços que são lares”, confirmando o que já canta há muito tempo o Jota Quest: “o melhor lugar do mundo é dentro de um abraço”.
Num pequeno livro escrito por psiquiatras e psicólogos chamado “Como lidar com a automutilação”, da editora Hogrefe, há uma afirmação de que a maioria das pessoas que se mutilam relata um sofrimento emocional insuportável, tendo a mente dominada por “raiva, ansiedade, tristeza, culpa, sensação de perda de controle, medo, rejeição, abandono e ‘vazio’”.
As primeiras práticas da automutilação costumam ser fruto de impulso, segundo os especialistas, vindas de atos sem muita reflexão. Com a dor física, surgem alívio e bem-estar momentâneos, mas depois voltam os mesmos problemas de antes, como medo, culpa, porém, mais potencializados, somados a frustrações e raiva de si mesmo.
É preciso que se acompanhe cada caso, pois, quando a automutilação se mantém por um período prolongado, pode ser que esteja associada a um aumento no risco de tentativas futuras de suicídio.
Muita gente questiona se esse tipo de ação, ou até a própria tentativa de autoextermínio, não seria “só para chamar a atenção”. Esses dias eu ouvi um termo interessante: o mal calculado. Sim, pode ser que em alguns casos a pessoa queira chamar a atenção para algum fato, para a própria dor ou até para si mesma, para que alguém a enxergue.
Mas, se numa dessas tentativas, que costumam ter ferimentos superficiais, acontecer um mau “mal calculado”, é uma vida que se perde.
Temos que eliminar da nossa cultura a ideia de que:
“Depressão é frescura”: depressão não é frescura, é doença. E adoecer não é crime e nem vergonha;
“Olha para mim, já passei por tanta coisa pior”: não há métrica para dor e nem todo mundo reage às emoções da mesma maneira, por isso, não se pode tratar dores de forma homogênea;
“É só você querer que tudo fica bem”: às vezes a pessoa quer, mas não encontra forças. Quem nunca passou por isso, quando está cansada e já não consegue mais fazer nada de tanta fadiga? Pois, em alguns casos, o cansaço perdura e a pessoa perde todas as energias. É preciso uma ajuda especializada para que ela se estabilize e, a partir daí, retome o seu controle.
“Isso é falta de uma boa trouxa de roupas pra lavar ou de uma vassoura pra limpar a casa”: não sei se uma trouxa de roupas adiantaria, mas entendo que ignorância se combate com conhecimento, então, quem pensa dessa forma deveria, na verdade, abrir sua mente para novos conceitos.
O estresse do trabalho, a pressão do momento, as incertezas, o abandono, os abusos e violências sofridos, a falta de esperança, um vazio interior que não se preenche só olhando o sol nascer, como recomendam alguns leigos, as desavenças com a família, a falta da família, tudo isso tem um efeito devastador em algumas pessoas.
Falo sempre que algumas pessoas têm feridas abertas, não cicatrizadas, que fazem com que até mesmo um pequeno acontecimento, para uns, perturbe muito outros, que sem enxergar uma saída, buscam medidas extremas.
Aprendi, porém, que se não se pode ajudar, julgar só atrapalha.
A gente não deve absorver as dores do mundo, mas viver de uma maneira que elas não existam é uma espécie de letargia social.