Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

O que nos deixa a morte?

Publicado em 12/07/2024 às 06:00.

Já na primeira estrofe da canção “Pedaço de mim”, Chico Buarque nos sacode, talvez tentando mostrar aquilo que vem pela frente. Parece que a letra vai tomando corpo, ou tomando parte no nosso corpo, aos poucos, numa evolução que nos pega desprevenidos, apesar do alerta inicial.

“Oh, pedaço de mim; oh, metade afastada de mim”, diz a música, que na cadência continua: “leva o teu olhar, que a saudade é o pior tormento, é pior que o esquecimento, é pior que se entrevar”.

Muito simbólica e muito forte. A saudade é pior do que tolher os seus movimentos, deixando-o entrevado, imóvel, sem se mexer. Lembro da conversa de três velhas amigas no alpendre de uma casa de interior, contando algum caso sinistro, que dizia que fulano, agora, “estava entrevado numa cama, o pobre coitado”. Desde então esta palavra me causa medo, pelo contexto em que me dei conta dela.

Mas Chico Buarque vai colocando intensidade ao falar da saudade, nos mostrando o seu ritmo na vida de quem já a conheceu. E quem não a conheceu? Seja a saudade de alguém que víamos muito e agora nos afastamos; seja de um tempo bom, que na época em que foi vivido talvez não tínhamos referências outras para saber quão bom era.

 “Pedaço de mim” vem com tudo, lembrando a saudade da pessoa que se foi, às vezes até mesmo de um filho partindo antes dos pais, contrariando algo que acreditávamos que fosse da “natureza da vida”, em que os filhos se despedem dos pais, não o contrário. Aí a canção cala fundo em nós: “Que a saudade é o revés de um parto, a saudade é arrumar o quarto, do filho que já morreu”.

Certa vez, dando uma palestra no interior de Minas, uma mãe que havia perdido o filho num acidente de moto me contou a dor do seu luto, dizendo que por muito tempo ela se permitiu ficar “esborrachada” no chão, destroçada em vários cacos, que ela jamais pensou que pudessem voltar a se unir. Um dia, sem mais nem menos, ela viu de novo o marido, sempre à sua espera. E percebeu o filho, também à sua espera. Ela não sabia como se reconstruir, pois os cacos não se mexiam. 

Esta mãe sugeriu que eu usasse em minhas palestras uma frase de Guimarães Rosa, que ela me disse do jeito que se lembrava: “viver é um rasgar-se e remendar-se”. Mais adiante, Rosa diz que o que a vida quer da gente é coragem. Ela questionou o médico e escritor por muito tempo, se perguntando de onde que uma pessoa em frangalhos tira coragem. Após a perda do filho, ela ainda não sabe explicar direito, mas foi com uma coragem que se fez amálgama, no tempo certo, que ela colou os caquinhos. “Uma hora a gente tem que voltar. Ninguém volta igual depois de uma perda, mas é preciso, uma hora, voltar”, afirmou aquela mãe.

"O luto é o preço que pagamos por ter coragem de amar os outros”, escreveu o psiquiatra americano Irvin Yalom, no livro “Uma questão de vida e morte”.

Uma amiga que está acompanhando sua mãe há dois meses num hospital de Belo Horizonte me falava da solidão dos hospitais. Pessoas diversas que não tinham um acompanhante e, muito menos, recebiam visitas. Como a sua família é muito pequena, minha amiga passa a semana toda no hospital e a outra irmã fica no fim de semana. Dividindo seu tempo entre o cuidado com a mãe e o trabalho remoto, ela começou a observar algo que a intrigou: nesse longo período, sua mãe dividiu o quarto com diversas outras pacientes: uma mulher em situação de rua, que não tinha visita e nem acompanhante; uma senhora, que tinha dois filhos que a visitavam por alguns minutos e ficavam longos dias sem voltarem. A mãe até reclamava da saudade, mas justificava que todos trabalhavam e que era difícil para eles estarem ali. Uma senhora que o marido ficou todos os dias da sua internação, chamou a atenção, mas a maioria das demais pacientes que ali passaram não tinham acompanhantes e sequer visitas.

Minha amiga contou que as pacientes reclamavam de dor física menos que da dor do abandono. Muitas daquelas pessoas contavam de um abandono ainda mesmo antes da internação, de filhos que não mais faziam ligações, não visitavam, não mandavam mensagens no quotidiano das suas vidas e, muito menos agora, na solidez da solidão hospitalar.

A mãe da minha amiga morreu esta semana, 62 dias após a internação num leito de hospital. No discurso da filha, no dia do velório, surge uma pergunta:  que é ter o sucesso? E ela constata que é o legado que se deixa. A sua mãe teve uma vida de sucesso. As filhas e o marido estavam ali, mas para além disso, a mãe estaria nelas, manifestada nas memórias dos sorrisos, das gargalhadas, dos momentos próximos, dos carinhos. Mas, estaria também, naquilo que ela conseguiu construir com cada uma: uma vida pautada no respeito, na dignidade, na esperança e na luta.

Em vida, aquela mãe não experimentou a solidão. Não a do abandono dos filhos e amigos. No dia do seu velório, quem a queria bem estava ali, para celebrar o sucesso de uma vida curta, mas sedimentada em bons exemplos e perpetuada por aquelas três filhas que continuam levando sua história e suas lembranças adiante.

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