Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

O sábio e o porco

Publicado em 25/11/2022 às 06:00.

A cultura indiana é muito rica e eu tenho uma curiosidade, em especial, pela gastronomia e pela religiosidade daquele povo. Também gosto muito da sua literatura, dos contos indianos, inclusive. 

Um dia desses eu estava assistindo a uma aula da professora Lúcia Helena Galvão, da escola de filosofia Nova Acrópole, que havia selecionado várias histórias e as contava com uma maestria que lhe é característica, conseguindo nos transportar para cada uma daquelas situações expostas. 

Como todas as histórias sempre têm uma lição acompanhando, ou várias lições a reboque, aquelas ali não poderiam ser diferentes.
Um dos contos dizia que um filósofo, chamado de mestre, prometeu a dois dos seus jovens aprendizes que os levaria ao ponto mais alto de uma montanha para conhecerem um sábio que por lá vivia, mas para que isso pudesse acontecer, os dois teriam que se esforçar em suas atividades para conquistarem aquele tão apreciado prêmio. Era preciso mérito para uma vivência tão grandiosa.

Pois eles assim o fizeram por muitos dias seguidos, aprimorando o seu conhecimento e se destacando em suas atividades propostas a tal ponto de conseguirem alcançar a recompensa. 

O filósofo então marcou com os dois um dia bem cedo, para que pudessem subir juntos àquela montanha. O tão esperado momento chegou e para não perderem nada, os dois aprendizes se adiantaram no horário, fazendo questão de chegarem ao amanhecer ao ponto de encontro.

Enquanto esperavam, viam o movimento de pessoas que caminhavam para uma feira local. Muita gente, carregada de coisas e animais. Um jovem pastor conduzia vários porcos para serem comercializados e dentre eles havia um porco gigante, que caminhava com muita dificuldade, devido ao peso e a alguma ferida incômoda em uma das patas. Isso fazia com que o comerciante se atrasasse e, por isso, estava extremamente irritado, dando uma surra no animal.

Pois vendo tudo aquilo ali, um ancião resolveu chegar perto do pastor e pedir a sua autorização para que ele pudesse carregar o porco. Assustado, o jovem permitiu, não acreditando que aquilo seria de fato realizado.

Como o jovem não se opôs, o ancião carregou o porco, com muita dificuldade, se lambuzando com a sujeira do animal. Os dois aprendizes viam aquilo perplexos, pois qual era a necessidade de fazer aquilo? Deixasse o animal sofrer, afinal é só um porco. 
Naquilo, no fim do trajeto, não havia nenhum tipo de gratidão a olhos nus. O porco não agradeceria, pois não é da natureza dos porcos agradecer. O jovem pastor e comerciante também não viu sentido naquilo e, por isso, fez-se de desentendido.

Quando o filósofo chegou até os dois, o grupo foi subindo a montanha e comentando aquele estranho caso do ancião e do porco. O filósofo, convicto, deu-lhes uma explicação: o ancião fez isso por ele mesmo, pois como a sua consciência indicava que aquilo seria o justo, se ele não o fizesse, todos os dias quando se lembrasse daquele fato lhe doeria, já que viria à sua mente que ele deveria ter feito o justo e não o fez.

Já no alto da montanha, numa casa simples, morava o tão respeitado sábio. Quanta honra poder conhecer um sábio! Ao baterem à porta, foram logo recebidos pelo mesmo ancião que eles viram na feira. Os jovens ficaram assustados com a coincidência, mas não falaram nada. Passaram um dia de aprendizado ali e ao irem embora, já no fim da tarde, o sábio perguntou se poderia contribuir com eles em mais alguma coisa. 

Eles ficaram relutantes, mas resolveram perguntar por que aquele ancião havia feito, na manhã daquele mesmo dia, todo um esforço para carregar um porco manco que era conduzido por seu pastor até a feira? O sábio, com olhar sereno, disse: “Hoje de manhã? Porco? Que porco? Não estou lembrando de porco algum. Peço desculpas, mas não me recordo do que vocês estão relatando”. 
Os discípulos então agradeceram, se despediram, e desceram a montanha sem entender nada. Foi quando o seu mestre, o filósofo, soltou uma risada para si mesmo. 

Os discípulos perguntaram do que ele ria e o mestre respondeu que havia atentado para um fato. Aquele homem, diferente dele, era um sábio. E continuou: “eu carregaria o porco por disciplina, mesmo estando em guerra interna, reclamando do porco, da má sorte de tê-lo encontrado. Mas o sábio, não. Ele carregou o porco com tanta naturalidade como a quem respira, sem que a mente precise registrar isso como algo diferente da rotina do corpo”. 

Para passar da condição de um filósofo para a de um sábio você tem que carregar mil vezes o porco por disciplina. Um dia carregará por natureza, por princípio, como afirma a professora Lucia Helena Galvão.

*Palestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural

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