Numa manhã de sábado, no icônico mercado novo de Belo Horizonte, um grupo sentado diante de uma grande mesa falava um pouco sobre suas histórias e sonhos. Eu cheguei à sala atrasado, pois tinha ficado perdido nos corredores do mercado, e quando entrei naquele ambiente, que um dia deve ter sido uma loja de cereais, verduras ou o que quer que seja, percebi que ao contrário de bancadas com frutas em exposição, o alimento ali era outro.
A área de ESG do TEDx Belo Horizonte convidou a todos ali para um bate-papo. A cada fala, uma potência revelada. A cada apresentação, novas histórias iam surgindo, de sonhos, lutas, realizações, fracassos, vontades, inspirações. Era como se entrássemos numa catarse, em que esta purificação coletiva nos unia para que a gente se fortalecesse em busca de algo comum: que seja o bem-estar ou a justiça social, sendo que o pensamento ali era sempre comunitário.
Quando aquele encontro deu uma pausa para o almoço, conversei com o poeta Dereck Carvalho, que me contou de uma exposição em que o João Goma fez e que demonstrava várias formas de pixação em ambientes diversos e um deles era na cadeia. Foi montado um cenário em que tinham as camas, simulando uma cela de um presídio e os materiais usados pelos presos para deixarem seu registro nas paredes daquele ambiente.
Após a exposição, Goma ficou com aquele cenário e resolveu, a partir daí, convidar alguns amigos para gravarem vídeos sobre o que passaram por trás das grades. Chegam, então, Thiago Arara, Gustavo Italiano, Samuel Xoc, João Santus (o diretor) e o próprio Dereck para compor um grupo que pretendia usar o humor para trabalhar a conscientização das pessoas a respeito do sofrimento que é a vida no cárcere. Como três desses cinco componentes já tinham passado pelo sistema penitenciário, um dos objetivos era mostrar aos jovens, e à população de maneira geral, de que nada compensa a perda da liberdade.
Aquela brincadeira ficou séria. Num cenário readequado para as gravações, surgiu o que hoje tem crescido exponencialmente nas redes sociais: “O Sistema”, uma série de vídeos que trazem a rotina de uma unidade prisional, com mensagens de reflexão e entretenimento.
Um dos vídeos publicados em seu perfil já está próximo de atingir um milhão de visualizações e os comentários trazem a realidade de quem já passou pelo sistema e hoje trilha novos caminhos.
Uma linguagem que atinge os jovens, principalmente aqueles de periferia, já que os componentes do grupo são pessoas que conhecem a realidade das comunidades, os sonhos de tantos adolescentes que buscam se destacar em meio à sociedade e muitas vezes recorrem ao crime, que os acolhe, para terem a aceitação que tanto almejam.
Depois do encontro inicial com o Dereck, no evento do TEDx, fui convidado a conhecer as gravações e a levar a história do Tio Flávio Cultural dentro das unidades prisionais, que em dezembro de 2023 completa 10 anos de atuação junto a adolescentes, adultos e idosos, sejam homens, mulheres ou LGBTs encarcerados.
Sugeri um roteiro para o dia da gravação, que foi logo acatado. Cheguei cedo ao estúdio e fui recebido pelo Goma, que me fez sentir como se eu estivesse em casa. O Italiano chega e já avisa que um restaurante parceiro vai mandar o almoço, é só a gente escolher no cardápio o que quer. O Jones, da empresa Coco Leve passa por lá, abraça a todos e também fica para o almoço. Chegam o Fael e seu filho, trazendo a comida que o seu restaurante, o Sabor de Minas, preparou para todos nós.
O legal é que o ambiente de gravação vira uma confraternização. O diretor de “O Sistema”, João Santus, chega com os equipamentos para a filmagem e também participa do almoço. O Italiano lembra que tem que convidar o Bitella, um participante eventual das gravações, que além de ter um coração enorme e um senso de humor apuradíssimo, faz a gente se divertir por detrás das câmeras. Daí a campainha da casa não para: o tempo todo chegam jovens que são influenciadores digitais, com milhares de seguidores em suas redes, que vão se juntando ao grupo, vestindo a roupa vermelha que se assemelha ao uniforme que se usa no sistema carcerário mineiro. Uma cela onde estariam cinco atores, agora têm dez participantes.
Aqueles jovens atingem outros jovens com seus vídeos de humor, de dicas em alguma área que atuam, como futebol, por exemplo. Eles são seguidos por muita gente e a mensagem de que a liberdade é o bem mais precioso do ser humano será amplificada, fazendo muitos adolescentes e adultos pensarem a sua vida, a situação em que estão e o que eles querem para si mesmos e para seus familiares. Assim, o poder de “O Sistema” não ficará restrito a quem o segue, mas ganhará as telinhas de outras tantas pessoas, usando o humor para conscientizar. Quer veículo de educação melhor e mais efetivo que este?
Que mais e mais pessoas assistam e recebam as mensagens que os vídeos propõem, que no meu entender são: viver a vida, respeitar as pessoas, valorizar a liberdade e ser feliz com o que há de mais simples e cotidiano em nossos dias.