Tempos depois do rompimento da barragem em Brumadinho, naquela tragédia que aconteceu em janeiro de 2019 e que chocou todo o Brasil, alguns repórteres relataram o que foi passar tantas horas numa cobertura exaustiva e dolorosa.
Lembro de um deles explicando que o jornalista tem que ter humanidade e frieza na medida certa ao cobrir eventos desse tipo. Não pode ser totalmente frio, para que consiga transmitir a emoção do momento. E não pode se envolver totalmente, tendo que manter um certo distanciamento, para que dê conta de trazer a notícia para quem precisa dela e, pessoalmente inclusive, preserve sua saúde mental.
Aquela fala me marcou muito, pois este equilíbrio é realmente muito difícil. Quando assistimos a acidentes, como o que aconteceu recentemente na Turquia e na Síria, em que um terremoto vitimou mais de sete mil pessoas, mesmo que estejamos distantes, a cena de uma menina debaixo dos escombros dando proteção ao seu irmãozinho nos leva às lágrimas. Uma outra cena de um bombeiro que corre com uma criança nos braços, que já nasceu órfã, nos abala de maneira aflitiva.
Pertinho de todos nós, numa dor que se arrasta ampliada pela falta de justiça, a tragédia que assolou a cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, escancara os relatos como os da cena dos corpos estendidos num ginásio esportivo à espera do reconhecimento pelos familiares. Várias pessoas em busca dos seus filhos, que haviam saído para uma festa na Boate Kiss e que não voltaram. Telefones celulares tocavam em cima dos corpos colocados lado a lado no chão do ginásio.
Já nas terras Yanomamis, vimos estarrecidos aquelas crianças em pele e osso, desnutridas e sem brilho algum no olhar, resgatadas da sua própria terra, inutilizada pela ambição garimpeira.
Em muitos desses momentos nós choramos diante das notícias, sem acreditar como tudo isso aconteceu e, ainda, o que fizemos e aprendemos com tudo isso.
A neurocientista Tali Sharot conduziu pesquisas sobre o comportamento humano e escreveu um livro chamado “O viés otimista”. Ela diz que “em termos coletivos podemos nos tornar pessimistas em relação aos rumos do nosso país, ou em relação à capacidade de os governantes contornarem problemas”. Vale ressaltar que a análise dela não é referente a nós, brasileiros, mas às pessoas de várias nacionalidades. A pesquisadora continua: “o otimismo individual, sobre nosso futuro em particular, é incrivelmente resistente”.
E aqui vem o paradoxo: quando pensamos no futuro, em termos pessoais, acreditamos que as coisas tendem a melhorar: vamos restaurar nossa saúde, ter melhor qualidade de vida e conseguir um emprego. Porém, em termos coletivos, a desesperança insiste em tomar conta do nosso cérebro e isso acaba refletindo nas nossas emoções, nas relações sociais e na nossa saúde física e mental.
Há toda uma contradição nisto aí, pois enquanto nos mobilizamos para ajudar pessoas vítimas de tragédias que tomam os noticiários, muitas daqueles que vivem nas ruas, pertinho nas nossas casas, são inviabilizadas ou condenamos por nós mesmos, sem que tenhamos conhecimento algum da sua história de vida. Simplesmente por estarem ali onde estão.
E quando entra o viés ideológico, fortemente despertado nos últimos anos, aí é que a coisa sofre uma piora.
Um filho acompanhava a sua mãe em um exame de ressonância magnética. Mesmo sendo advertido do perigo de portar uma arma naquele ambiente (ou também naquele ambiente), ele insistiu em não abrir mão do artefato. Num determinado momento, a máquina atraiu a arma como um imã, que disparou um tiro no abdômen daquele jovem, filho da senhora que passava pela ressonância.
A mídia divulga o fato e revela o viés ideológico: aquele homem era um advogado, que usava suas redes sociais para defender ideias armamentistas de maneira até acalorada. Dias depois este jovem morre, vítima do tiro da sua própria arma e de outra arma que, talvez, inconsequentemente ele pode também ter sido vítima: o extremismo.
Outras pessoas poderiam ter sido feridas naquele dia, mas, fato é que uma mãe perdeu seu filho e um filho perdeu um pai, amoroso e cuidadoso. Este jovem era pai de um filho com deficiência, que agora está órfão.
Nos comentários, muita gente não viu o filho e nem o pai, apenas o armamentista, inundando de comentários desprezíveis. A defesa pelas armas feita por aquele advogado poderia proteger mais gente, afirma um lado ou poderia matar mais, argumentam outros. O triste desta história é nos deixarmos comemorar a morte de alguém que consideramos ofensivo, fato que pode nos igualar àquilo que abominamos.
É preciso estar atento para que a gente não tenha comoções seletivas enviesadas pelas ideologias. Uma vida é uma vida e um erro não se combate com o fim dela, mas com o fortalecimento da justiça.