Numa passada rápida pelas plataformas de streaming, uma novidade me chamou a atenção: uma série brasileira retrataria uma das histórias que nós, brasileiros, não temos nenhum orgulho. Já se passaram tantos anos, e por que, logo agora, essa história volta à tona? Se veio, é porque era preciso. Se veio, é porque muita coisa ainda precisa ser pensada e resolvida, tendo como referência aquele crime ocorrido na noite de 23 de julho de 1993, na cidade do Rio de Janeiro, aos pés de uma igreja católica, debaixo de uma santa cruz: a chacina da Candelária, como ficou conhecida aquela barbárie.
Hoje, uma tímida cruz de madeira, com uma placa ainda mais tímida, está diante da Candelária para que aquele dia não seja esquecido.
Lembrei-me de quando fui à Alemanha fazer um curso com a engenheira eletricista brasileira Lígia Fascioni, que consistia em percorrer a cidade de Berlim para conhecer sua história e curiosidades. Um ponto turístico que todos visitam é justamente o que restou do Muro de Berlim, que por anos separou a capital alemã, impedindo que a população da Alemanha Oriental continuasse fugindo para Berlim Ocidental.
O mesmo acontece com o Memorial do Holocausto, um dos lugares mais angustiantes que visitei naquela viagem. São 2.711 blocos de concreto de um cinza escuro, distribuídos em fileiras paralelas sobre uma superfície ondulada. Neles, não há texto, nome ou foto. Os blocos têm 2,38 m de comprimento por 0,95 m de largura, e a altura varia de 0,2 m até 4,8 m. Ao passar entre eles, a sensação é de que te engolem vivo, que te sepultam. Os alemães provocaram aquela dor e não podem esquecê-la.
Já por aqui, nós esquecemos!
Um táxi e um Chevette, com placas obstruídas, eram conduzidos por homens, que mais tarde se descobriria serem milicianos, militares e ex-militares com atuação ilícita no local. Naquela noite, dezenas de crianças e adolescentes dormiam nas escadarias e arredores da igreja, quando esses homens desceram dos dois carros disparando, ferindo muitos e matando seis menores e dois jovens. Imagine só: eram dezenas de crianças que dormiam nas ruas. A mais nova dentre as vítimas era Paulo Roberto de Oliveira, de 11 anos.
Minha percepção é que, ao escrever o roteiro da série "Os Quatro da Candelária", que estreou na Netflix, Luis Lomenha e Márcia Faria tiveram como ideia dar vida àqueles meninos que ali estavam, dando-lhes nomes e rostos, simbolizados pelos quatro personagens principais, que carregaram magistralmente o peso de representar muito mais do que quarenta crianças e adolescentes daquela época, mas também as de hoje. A série suscita a reflexão sobre o extermínio da população preta e pobre.
Os personagens fictícios da trama são Jesus, vivido por Andrei Marques, que desde o início demonstra que algo forte e doloroso o atormenta; Douglas, interpretado por Samuel Silva, que precisa enterrar o "pai" como forma de agradecimento a quem o criou; Sete, vivido por Patrick Congo, uma criança que sonhava em ser marinheiro, como seu avô foi; e Pipoca, interpretada por Wendy Queiroz, docemente cuidada por todos e que vive da esperança de que a mãe volte. Os roteiristas foram tão espetaculares que nos fizeram conhecer as histórias que compõem a vida daquelas crianças: suas infâncias de abandono, perdas, abusos, afetos e desafetos. Mostraram os delitos cometidos por elas, mas fizeram o belo trabalho de nos proporcionar um olhar mais amplo.
Era assim que a artista plástica e voluntária Yvonne Bezerra de Mello, criadora do projeto "Escola Sem Portas e Nem Janelas" e fundadora do projeto Uerê, via aquelas crianças. Em 2023, ela disse, em entrevista ao G1: "Eram meninos e meninas que sofreram abuso, sofreram violência doméstica, sofreram violência nas comunidades devido a operações policiais que já existiam da mesma maneira que hoje. São vidas perdidas por omissão, por negligência, por exclusão. Então, toda vez que eu estava com eles e via os talentos que poderiam advir daqueles meninos, eu ficava até meio deprimida, perguntando: 'Meu Deus, por quê? Por que desperdiçar tantas vidas?'".
"Os Quatro da Candelária" não tem apenas um elenco sensacional. São atores humanos, que deram sua vida para deixar aqueles 40 meninos viverem nas telas e na nossa memória. Parabenizei o Andrei Marques logo após assistir ao primeiro episódio, sem ter chegado ainda à história de Jesus, que ele interpretou. Com humildade, ele me disse: "Tá tudo muito lindo, vale a pena assistir. Quando assistir, me conta o que achou". Respondo, neste texto: "Achei que você tem toda razão".