Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Professor: aquele que ilumina caminhos

Publicado em 07/02/2025 às 06:00.

Numa manhã quente de fevereiro, os corredores de uma escola pública de Belo Horizonte, antes silenciosos, começaram a ganhar vida novamente. Os professores iam chegando, uns de carona, outros acompanhados por parentes que os deixavam na porta. Naquele dia, no lugar de livros, traziam algum alimento para o café da manhã compartilhado.

No retorno das férias, a alegria vinha nos abraços, nas conversas, nas risadas, na saudade dos amigos, que acompanham a trajetória uns dos outros pelo longo tempo que passam juntos na semana e pelos anos de trabalho que dividem. “Ela não me larga”, dizia uma professora sobre a outra. Elas se conheceram ali, naquela escola, e hoje são comadres.

Os professores chegavam trazendo histórias de férias, de descanso, de dias longe da sala de aula. Uns reclamavam que o tempo passou tão rápido que não deu para fazer nada do que haviam programado. Outra ria, dizendo que a gente planeja tanta coisa que acaba ficando com a sensação de não ter feito nada.

Ali, naquele espaço amplo, bem cuidado e acolhedor, reuniam-se homens, em menor número, e mulheres que carregam consigo o peso da responsabilidade de educar, mas também a leveza de quem ama o que faz. São como maestros que treinam incessantemente nos bastidores, mas que, ao subir ao palco, parecem fazer tudo com naturalidade. Sim, a serenidade de quem sabe o que está fazendo.

A reunião de volta às aulas é um ritual. Um momento de reencontro, de trocas de ideias, mas também de esperança. A maioria ali é composta por mulheres, muitas com mais de 10, 20 anos de magistério. Mulheres que viram o mundo mudar, que acompanharam gerações de famílias crescendo, que enfrentaram desafios que nem imaginavam existir quando começaram a lecionar. Ali, há professoras que, mesmo com os cabelos grisalhos e os olhos marcados pelo tempo, ainda brilham ao falar de seus alunos.

Durante a palestra que ministrei, pude observar de perto a energia daquela equipe. Havia uma mistura de entusiasmo e preocupação. As conversas giravam em torno das férias: algumas viajaram, outras ficaram em casa descansando, muitas aproveitaram para colocar a leitura em dia. Mas, aos poucos, o tom mudava. Surgiam relatos de dificuldades, de desafios que parecem aumentar a cada ano. A hiperconectividade das crianças, por exemplo, é um tema recorrente. “Eles não desgrudam do celular”, dizia uma professora. “É difícil competir com o TikTok”, completava outra, meio brincando, meio séria. Este é o primeiro semestre de um ano letivo em que uma lei restringe o uso dos aparelhos celulares em sala de aula, exceto para atividades didáticas programadas.

A realidade da sala de aula hoje é bem diferente daquela que muitos professores encontraram quando começaram a lecionar. As crianças chegam à escola com uma bagagem emocional intensa. Muitas vêm de lares desestruturados, outras enfrentam dificuldades financeiras que as obrigam a depender da merenda escolar para se alimentar. Há ainda aquelas que estão ali porque os pais precisam trabalhar e não têm com quem deixar os filhos. A escola, nesses casos, vai muito além do ensino: torna-se um porto seguro, um lugar de acolhimento para necessidades básicas como afeto, pertencimento e, claro, alimentação. E isso é triste, pois o ideal seria que a criança frequentasse a escola apenas pelo aprendizado.

Há casos de famílias presentes também, de pais que se oferecem, inclusive, para ajudar em pequenas manutenções que a escola precise e que estão sempre presentes, conversando com as professoras, com a direção.

Durante a palestra, uma professora com mais de 20 anos de sala de aula, compartilhou um relato que emocionou a todos. Contou sobre um aluno que, no ano anterior, chegou à escola agressivo, desinteressado, quase intratável. Aos poucos, ela conquistou sua confiança, descobriu que ele vivia em um ambiente familiar conturbado e passou a dedicar um tempo extra para ouvi-lo. Numa sala de aula com vinte alunos, isso parece impossível, mas a experiência e a maturidade ajudam a perceber que, para além do conteúdo, a postura solidária e empática faz com que o aluno se sinta seguro para confiar no professor.

No final do ano, o garoto não só melhorou seu desempenho escolar como também agradeceu à professora por nunca ter desistido dele. “São esses pequenos milagres que nos mantêm firmes”, disse ela, com os olhos cheios d’água, enchendo os meus também — de lágrimas e de esperança. Essas histórias parecem surgir no momento certo, sempre quando o cansaço se instala ou quando a vontade de desistir se intensifica.

Mas nem tudo são histórias de superação. Há também os momentos de frustração. A falta de reconhecimento, a desvalorização da profissão, a dificuldade em lidar com pais que, muitas vezes, transferem para a escola a responsabilidade de educar seus filhos são fatores que pesam. “Às vezes, a gente se sente sozinho”, confessou uma professora mais jovem, que está há apenas cinco anos no magistério.

É nesse contexto que a parceria entre escola e família se torna tão crucial. Os professores sabem que não podem fazer tudo sozinhos. Precisam do apoio dos pais, da comunidade, do poder público. Mas, na prática, essa parceria nem sempre acontece. Há pais que não comparecem às reuniões, que não acompanham o desempenho dos filhos, que não se envolvem no processo educativo. E, quando algo dá errado, a culpa recai sobre a escola. Há pais que, inclusive, ainda não entenderam que são pais.

Apesar de todos os desafios, o que mais me impressionou naquela manhã foi a resiliência daqueles professores. E isso, de um lado, me preocupa, mas, de outro, me anima. Eles não estão estacionados no tempo. Pelo contrário, estão sempre buscando se renovar, se adaptar, aprender novas formas de ensinar. Participam de cursos, trocam experiências, se reinventam a cada dia. E fazem isso não por obrigação, mas porque acreditam no que fazem. Das salas de aula saem projetos incríveis, que muitas vezes nem são conhecidos por toda a rede municipal ou estadual de ensino. São iniciativas realizadas dentro da escola, que impactam a vida do aluno muito além dos muros escolares.

Exemplo disso é uma mãe que relatou que, depois das atividades práticas sobre a dengue, seu filho virou um “exterminador do mosquito”. Foi à casa da avó e chamou a atenção para embalagens plásticas com água parada no quintal.

Mas essa resiliência me preocupa, pois, ao verem isso, município e estado acabam relaxando, confiando que aqueles professores darão conta. E a pressão é enorme, muitas vezes exagerada, gerando ansiedade, estresse, mudanças de humor e, em alguns casos, apatia pelo que fazem.

Enquanto saíam da sala, pude ouvir risos, conversas animadas, planos para o ano que se iniciava. E, em meio a tudo isso, uma frase dita por uma das professoras mais antigas ecoou em meus ouvidos: “A gente não desiste, porque a educação não pode parar.” De fato, não pode. Ela circula no nosso sangue, nos inspira, nos faz pensar em um mundo melhor para as crianças que educamos. Mais do que isso, carrega a esperança de que essas crianças se tornem éticas, solidárias, humanas.

Dali entram alunos que saem professores, como é o caso da Grazi Mendes, uma referência latino-americana, que hoje atua em uma das maiores escolas de negócios do mundo, a Fundação Dom Cabral, e que foi aluna de uma escola pública de Belo Horizonte, a Escola Municipal José Maria Alkmim. Grazi escreveu um livro, cujo título, muito sugestivo, é: “Ancestrais do Futuro”. Nele, traz uma reflexão que eu nunca havia feito. Sempre reverenciei meus ancestrais, aqueles que vieram antes de mim, mas eu serei o ancestral de uma nova geração. O que faço hoje será o legado para quem vem depois.

Por isso, cada dia mais, rendo minhas homenagens às professoras e professores deste país, que fazem sua revolução pelo conhecimento e salvam vidas — longe de holofotes, sem câmeras de celulares para autopromoção. São “influencers” reais, práticos, da vida que não vai para o TikTok.

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