O sol “começava a esquentar” em um município mineiro e a porta do presídio já estava movimentada.
O ônibus que me leva até esta unidade prisional sai às 6 horas de Belo Horizonte e o seu ponto final é a poucos metros do meu destino, que com trânsito bom a viagem se dá em pouco mais de duas horas. Vou me aproximando da entrada, cumprimento quem está na porta e me identifico para os policiais. Ali desenvolvemos alguns projetos de educação através do movimento voluntário que coordeno, o Tio Flávio Cultural, presente em diversas unidades de privação da liberdade.
No mesmo momento em que tenho minha autorização de entrada, um carro para no portão, na área de segurança. Os policiais identificam a motorista e partem para abrir o acesso. Uma mulher que estava do lado de fora, com sacolas em suas mãos, olha para dentro do carro. Alguns custodiados que voltavam da sua descida temporária reconhecem a juíza daquela comarca e a perguntam algumas questões, que ela prontamente responde. Anota no celular algumas coisas, explica outras, sem pressa e com atenção.
A senhora das sacolas pergunta: “ela é a juíza?”. No que os outros respondem que sim, ela dá alguns passos, curvando o corpo para olhar para dentro do carro e fala direto com a magistrada: “Queria tanto ver o seu rosto. Falam muito da senhora. Eu sou mãe de um preso e queria muito te conhecer. Só isso. Todos dizem que a senhora é muito justa”. Do lado de dentro, a juíza sorri e agradece.
Aquela cena me impactou. A dor nos olhos de uma mãe se misturava à gratidão por uma magistrada ser justa. Aquela mãe não pediu o perdão da pena do filho nem explicou nada do processo. Só queria agradecer por poder confiar na justiça.
Por muito tempo eu tive a ideia de que o judiciário era bem afastado das pessoas, que não sentia suas dores, que não conhecia a sua realidade. Mas esta minha percepção está mudando ao passo que vou conhecendo profissionais que cruzam os espaços das salas fechadas e vão conhecer contextos.
Não estou dizendo que não se tenha uma quantidade considerável de burocratas que orbitam as esferas públicas. Mas, conhecer o outro lado tem me dado esperança e força para continuar.
Para a minha sorte tenho lidado com uma magistratura que atua com excelência, entregando para a sociedade o que ela espera de um juiz, mas que para além disso, se movimenta para que a base da sociedade seja impactada e possa mudar.
Durante uma palestra que proferi para mulheres vítimas de violência, em Belo Horizonte, soube de uma desembargadora que é presente e participativa nestas causas, que não se deixa abater e vai em busca de cursos, parcerias para que as mulheres sejam acolhidas. Neste mesmo dia, um juiz da vara da violência doméstica me é apresentado. Ele se coloca em pé diante daquele auditório de mulheres e fala para elas, com o coração. Nos olhos das mulheres a alegria de que alguém as entenda, sem duvidar, apontar erros, condená-las por não terem sido “boas esposas”. Já numa viagem à cidade de Patos de Minas, depois de uma palestra em uma APAC, recebo em meu celular o recado da então juíza, me convidando para voltar mais vezes e agradecendo.
Antes a gente tinha que bater à porta do judiciário e esperar... E esperar. Pensando bem, ainda temos. Mas me espanta, e desta vez positivamente, receber uma mensagem de uma juíza pedindo para somar forças; chegar para falar com os custodiados e o então juiz da cidade de Campo Belo estar sentado entre eles, para também ouvir a palestra; O juiz da cidade de Lavras se aproximar, durante um evento, e falar que espera a minha visita; à mesa de outro evento, o juiz de Frutal falar da importância do olhar não só para os homens, mas mulheres e adolescentes encarcerados; ou o de Manhuaçu, que pede ao Minas pela Paz mais atividades laborais para os presos da sua comarca ou uma juíza, agora em BH, que vibra ao saber do engajamento dos presos em projetos sociais.
Causa-me alegria uma juíza da comarca de Igarapé reunir os custodiados para anunciar uma parceria de trabalho externo que beneficiará tanto eles quanto a comunidade ou o juiz da Infância e Adolescência de BH chegar ao fórum distribuindo bala de chocolate às pessoas que aguardam a audiência e que ali trabalham. Deixa-me feliz uma desembargadora à frente dos projetos voluntários do Tribunal de Justiça, outra que nos procura para ajudar pessoas em situação de rua e outra que, apesar de aposentada, visita instituições que cuidam da saúde mental da população e busca iniciativas para melhorar aquelas condições.
Esta é a justiça humana que eu tanto sonho, que não deixa de ser justiça, mas que considera o outro que ora se assenta diante da autoridade de um juiz ou que empilha as suas mesas em forma de papéis.
A ativista Ângela Davis diz que para que um desencarceramento aconteça de fato, é preciso investir em educação, saúde e empregabilidade. A isto também damos o nome de justiça: é a justiça social, que cabe a todos nós.