Encerrei a minha palestra na histórica cidade de Itabira, MG, e uma mãe pediu para conversar comigo. Ela estava bem sensível, pois há alguns anos havia perdido o filho em um acidente numa das rodovias mineiras. Ela chorava contida. Foi ali que ela citou uma frase do Guimarães Rosa, que eu usei na minha exposição, e que fez um novo sentido para mim.
Ao falar da empatia em relação aos enlutados, ela me disse que as pessoas podem até imaginar, mas ninguém sabe de verdade o que passa no coração de uma mãe que perde um filho.
Guimarães Rosa diz que viver é “um rasgar-se e remendar-se”. Quando apresentei esta frase na palestra o sentido era de que vamos ter “altos e baixos”, passaremos por situações difíceis, mas é preciso aprender e descobrir o momento de retomar a caminhada.
Aquela mãe, com o coração em frangalhos, me disse que foi exatamente o que ela sentiu. Era como se a vida tivesse parado naquele local da morte do filho. Ela ficou ali, chorando diante do corpo dele por dias, meses. Na verdade, por cinco anos. Ela achava que ao devolver-se o direito de viver, ela estaria negando a morte do filho.
Ela diz que é difícil ser empático de verdade, pois todos cobram do enlutado que seja forte, que fique bem, que não chore, que pense que o filho está num lugar melhor, o que a fazia pensar que não foi uma boa mãe. Ao chegar nos lugares, ninguém tocava no assunto. Ela admite que é chato, mas que o enlutado precisa falar.
A falta e a dor fazem com que quem vive o luto reaja de maneira bem diferente. Ela falava o tempo todo sobre o assunto, colocava fotos do filho nas redes sociais e em sua casa. Ao encerrar a conversa ela me disse: “ninguém vive um luto igual. Um dia eu me dei conta de que fiquei parada no dia do acidente enquanto meu outro filho e meu marido também precisavam de mim. Foi aí que eu voltei, remendada, porque ninguém volta igual”.
Muito tempo se passou e esta história ainda está gravada em mim. Toda vez que cito esta frase do Guimarães eu lembro daquela mãe. Naquela época eu ainda não tinha curiosidade pelo tema finitude, mas saí impactado com aquela dor muito viva, de uma mãe que segue sem superar a perda, obviamente, pois não há de se superar a perda de ninguém, mas que vai se adaptando a uma nova realidade.
Anos depois eu entrevistei a médica paliativista Dra. Cristiana Savoi. Foi ela que docemente me sugeriu estudar o tema também pelos olhos da filosofia. Conheci as psicólogas Gláucia Tavares e Marília Aguiar, referências no assunto, que me apresentaram a Rede API, uma rede nacional de apoio a enlutados para expressar e compartilhar experiências, ampliar percepções, aprendizados e novos caminhos possíveis.
Fiz o treinamento do CVV – Centro de Valorização da Vida e estou finalizando o curso de “Tanatologia, Perdas e Lutos” do Núcleo Singularidade, do Rio Grande do Norte, onde tenho tido a oportunidade de ter acesso a muitas experiências ricas de professores e alunos.
Quando fui convidado a atuar no sistema prisional, numa unidade com alto índice de suicídio, não fui como terapeuta, pois não o sou e valorizo o trabalho profissional de psicólogos e psiquiatras. Eu aceitei o convite, mas sem ao menos saber o que poderia fazer. Aí que percebi como o meu curso de origem, a Comunicação Social, poderia ser utilizada naquela situação: eu simplesmente comecei a ouvir as pessoas, até o momento em que criamos um projeto em que elas pudessem, de fato, falar, através da escrita de um caderno, a que chamamos de “Diários da Liberdade”, projeto que hoje cria corpo e alcança outras unidades prisionais de Minas Gerais.
Lendo o livro “Tudo bem não estar tudo bem”, da Megan Devine, entendi que nós, sociedade, não sabemos nada sobre o luto. Quanto mais estudarmos, falarmos de maneira responsável, não atrairemos a morte, mas a sabedoria para ajudar de fato quem vive este momento de dor.
“A pessoa que se foi não iria querer que você ficasse triste; tudo acontece por um motivo; pelo menos vocês viveram este tempo juntos; você é forte, inteligente e capaz, vai conseguir superar; essa experiência vai fortalecê-lo; você vai ter outras chances, arranjar outro companheiro, ter outro filho, encontrar um modo de canalizar a dor para alguma coisa linda, útil e boa”. Estas são frases que Megan cita em seu livro, que as pessoas usam inadvertidamente, que soam como frias, banais, de uso massificado, aplicado a qualquer tipo de perda. E mesmo que quem as fale não tenha esta intenção, todas podem soar perversas.
É preciso, de fato, criar uma cultura do luto na nossa sociedade. Muita gente que hoje sofre poderia ter ao menos a sua dor entendida.
Aos que se interessam pelo tema, indico os livros de autoras mineiras: “Nem covarde, nem herói”, da Luciana Rocha (sobre o luto por suicídio); “Na beira do mar, o amor disse oi”, da Odette Castro (sobre como conversar sobre a morte com as crianças) e “Do luto à Luta”, da Gláucia Tavares.