Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Saudades da minha avó

20/10/2021 às 19:53.
Atualizado em 05/12/2021 às 06:05

Um dia desses eu estava olhando um álbum de fotografias, daqueles bem velhos. Na verdade, fotografia impressa já é algo bem antigo por si só, mas no passado provocava uma emoção gostosa, mandar revelar um filme e conter a ansiedade até que a revelação fosse entregue.

Sentei-me ali no chão e fiquei folheando aquele livro imenso e pesado, uma “bíblia”, com folhas de um papel mais rígido e um tipo de plástico autoadesivo que fixava as fotos.

Deparei-me com várias fotos da minha avó materna, que me arremessaram lá para a minha infância. Minha avó tinha um cabelo comprido, que ela prendia com grampos, fazendo um coque.  O cheirinho de uma colônia ficava no ar quando ela saia do banho: eu acho que ela usava “Leite de rosas” ou algo similar, mas em todo o seu corpo e não só nas axilas. Tinha as pernas tortinhas, o que a fazia caminhar com dificuldade, segurando-se em mesas e cadeiras e dando um pique para se apoiar no objeto mais próximo. Os dedos cheios de artrites e o sorriso que parecia emitir uma luz, de tão honesto e aconchegante.

Ao passo que vou escrevendo aqui, a imagem dela vem à minha mente de uma maneira tão doce e saudosa.

Ela dormia muito cedo. Como morava em uma casa situada às margens do Rio das Velhas, em Santa Luzia (MG), fechava todas as janelas, e lembro que eram muitas, antes das seis da tarde.

As janelas eram uma beleza à parte, sendo de fechamento duplo: a primeira delas era feita em madeira e vidro, cortadas ao meio e que para abrir bastava suspender a parte de baixo, ou descer a de cima, para controlar a entrada do vento. Depois a minha vó  fechava as duas portinhas de madeira que impediam a entrada da luminosidade. Para finalizar, ela ainda colocava um ferro atravessado de um lado ao outro para tentar trazer mais segurança.

Também acordava muito cedo, de madrugada mesmo, por volta das duas da manhã e rezava por umas horas ininterruptas. Ela era muito fervorosa, do tipo que ouvia diariamente a oração das 18 horas, numa estação de rádio local. Ela saia correndo, com um copo de água em cima do aparelho, para que fosse abençoada. E lá começava a oração: “ave-maria”, cantada.

Ela ia lá para a ampla cozinha antes do sol nascer e começava a tarefa de fazer biscoitos, bolos, doces. Tinha um armário antigo de madeira, com cerca de quatro ou seis portas e lá dentro latas e mais latas de biscoitos.

Você sabe o que é ter uma avó que tem o prazer em cozinhar? Ela era uma artista no que fazia, seu caderno de receitas mais parecia uma enciclopédia da culinária.

Em sua casa tinha fogão a lenha, que ela buscava no quintal, cortando-a com uma ferramenta chamada cunha. Tinha um papagaio que era apaixonado por ela e morreu no dia em que ela saiu de casa numa maca, acidentada.

Ainda hoje trago na mente a doçura da minha avó. Adorava ditados populares e vivia sorrindo. Em seus braços a gente se sentia seguro.

Além da lembrança que tenho dos pastéis, bombocados, doces de amor em pedaços, ambrosia, biscoito rabo de gato, rosquinhas de nata, doce de leite e de cidra, empadão de frango, canja de arroz com galinha, ela soube deixar na memória dos seus netos um afeto que hoje nos alimenta.

Como é bom ter avós, que nos dão um amor diferente dos pais. É um amor mais experiente, parece que sem culpas e cobranças, pelo menos no meu caso foi assim. Sinto saudades da sua presença e alegria de terem ficado em meu coração as lições mais puras de amor e dedicação.

Compartilhar
Ediminas S/A Jornal Hoje em Dia.© Copyright 2024Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por