Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Semeando vidas

04/07/2024 às 05:00.
Atualizado em 05/07/2024 às 12:30

São dois dias na semana em que aquele local funciona como uma igreja evangélica, recebendo seus fiéis para os cultos no bairro Minas Caixa, em Belo Horizonte. Os outros dias, em que as portas do templo estariam fechadas, foram cedidos para o projeto Semeando Vidas, que há dois anos vem mudando a realidade de algumas famílias do local.

Em junho de 2022, quando um pequeno grupo se reuniu para criar o projeto, eram apenas seis crianças inscritas. Dois anos depois, na data do seu aniversário, o projeto, composto por voluntários, comemora a presença de 150 crianças e adolescentes que ali recebem atendimentos com profissionais de psicologia, pedagogia, aulas esportivas e de inglês, rodas de conversa, dentre outras atividades.

Fui convidado para conversar com as crianças mais velhas e com os adolescentes na semana de comemoração de aniversário do Semeando Vidas. A presidente do projeto foi uma criança assistida por um trabalho similar e hoje, com um entusiasmo muito grande, entrega para esta nova geração aquilo que foi definitivo em sua formação: acolhimento, carinho, pertencimento e respeito.

Cheguei ainda em dúvida sobre minha abordagem já que, apesar de serem os meninos mais velhos que participariam, eles eram muito crianças e pensei que o assunto se tornaria chato e distante. Alguns deles estavam à espera do nosso início e aproveitei para sentir o clima da plateia. Como num passe de mágica, aquele local foi lotando. Perguntei para uma voluntária se as crianças vinham com os pais, já que o evento era à noite, e ela disse que todos moram nas redondezas, estavam acostumados a irem com os irmãos, colegas, vizinhos, que também eram crianças que participariam do evento.

Eu ainda tinha muitos questionamentos: quem era aquela meninada, por que estavam ali, o que o projeto fazia para atrair tanta gente, pois o salão estava cheio? A voluntária me disse que aquele é um ambiente de socialização delas. Entre a escola, a rua e a casa, era o espaço mais importante que tinham. Ali elas conversam, encontram os amigos, recebem o carinho dos voluntários. Mas, claro, não é só isso. Em todos os encontros é servido um jantar, que elas podem comer e repetir, já que muitas não tinham fartura em casa.

Sempre que consegue, o projeto dá a cada família ali representada uma sacola com produtos de hortifruti, doados pelo Supermercado BH e que acaba sendo uma fonte de alimentação para aqueles que vivem em situações de muita vulnerabilidade financeira e social.

Mensalmente o projeto se vira como pode para conseguir 50 cestas básicas para serem entregues às famílias também. Sabemos que uma cesta, para uma família de cinco pessoas, não dura nem até a metade do mês, mas é a salvação de muita gente.

A maioria das crianças ali, quando perguntadas sobre o que pretendem ser quando crescerem, não têm a mínima ideia (não fiz essa pergunta, mas nas dinâmicas do dia a dia sempre surge algo assim). Não respondem jogador de futebol, professor, médico ou cantor. Não falam nada, a não ser: "sei lá"! Aprendi com a professora Rosely Sayão que para as crianças não devemos perguntar o que elas querem ser quando crescerem, mas o que elas querem ser “antes” de crescerem. Em muitos projetos que vou, vejo que nem infância as crianças se veem no direito de ter.

Durante a pandemia recebi fotos de uma professora do bairro Zilah Spósito que queria mostrar uma realidade às vezes tão distante e próxima ao mesmo tempo e que parece tão irreal: uma mãe estourava pipoca para que os filhos pudessem se alimentar no almoço. E por trás disso têm várias arguições, vindas de quem não conhece uma realidade diversa: “ah, mas a prefeitura dá uma cesta”, “ah, mas essa mãe não procura um emprego ou um bico”, “ah, mas esse povo tem auxílio do governo”.

Recentemente um vereador da cidade de São Paulo conseguiu aprovar uma lei, em primeira votação na Câmara, que multava quem doasse comida a pessoas em situação de rua, em abrigos ou em miséria. A multa seria de R$ 17 mil e obrigava quem quisesse fazer este trabalho voluntário a disponibilizar mesa, cadeira, tendas para a distribuição dos alimentos. Isso para instituições que passam o mês pedindo ajuda para comprarem o macarrão da sopa, o que mostra que há gente que conhece a miséria só por (ou para) fotografia e olhe lá. 

Assim, fiz a palestra. Não achei que consegui deixar algo para aquelas crianças que pudesse aliviar alguma dor, mas levei todo meu carinho e respeito a cada uma.

No final, uma menina pegou a Bíblia que carregava e pediu para que eu desse um autógrafo. Isso me comoveu. Outras duas me perguntaram onde podiam encontrar o meu livro, porque elas adoram ler.

Ao voltar para casa, entendi que aquela palestra foi mais para mim do que para as crianças. Eu precisava daquilo, de olhar nos olhos de crianças e renovar a minha esperança e minha vontade de fazer mais, pois há muito a ser feito. Parabéns ao Semeando Vidas. O nome do projeto traduz muito bem o que fazem.

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