Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Sentido da vida e o mito de Sísifo

Publicado em 03/06/2022 às 06:01.

Um dia uma pessoa que se encontrava numa situação de extrema vulnerabilidade, seja sanitária, social, emocional e de tudo mais que possamos entender como de’samparo, me fez uma afirmação de algo que ela já tinha se convencido, fruto do aprendizado diante de tudo que viveu. Eu perguntei como era estar ali, num lugar que para mim parecia o inferno retratado por Dante (não disse isso), e ela respondeu: “na vida a gente se adapta (sic)”.

Sei mesmo que o cérebro tem esta plasticidade para adaptações. Sei também que algumas das nossas memórias passam a não figurar no “painel central” do nosso cérebro eternamente para que a gente se lembre de outras experiências e atribua menos relevância a algumas dores que, se lembradas todos os dias, seriam insuportáveis de aguentar.

Mas o “adaptar” me chamou a atenção na fala daquela mulher. Lembrei do mito de Sísifo, que é daquelas histórias que toda vez que eu leio, me provoca novas reflexões. Sísifo pode ser considerado o mais espertalhão dos homens da mitologia grega, pois ele conseguiu enganar a própria morte algumas vezes, “passando a perna” nos deuses.

Conta o mito que, tendo enganado os deuses, Sísifo recebeu uma condenação eterna, a de que teria que subir diariamente uma grande montanha empurrando uma enorme pedra. Toda vez que ele chegasse ao topo, veria a pedra rolar para baixo, até atingir a base, o solo, obrigando-o a subir novamente, incessantemente, numa vida que era imersa numa rotina enfadonha.

Como os mitos servem de referência para o que nos acontece de fato, na vida real, podemos dizer que muitos desses ensinamentos se aplicam às nossas vivências, já que colocamos a vida no “modo automático” e nem percebemos que o dia a dia se tornou uma repetição daquilo a que fomos “condenados” a desempenhar.

Quem dera que a vida fosse como canta a Zizi Possi, na música “Bom dia”: “só sei que eu acordo e gosto da vida, os dias não são nunca iguais!”.

Quando penso nas minhas “adaptações”, entra em cena uma parte do meu cérebro, minha aliada, me defendendo, fazendo-me acreditar que Sísifo sim era um infeliz, um repetidor de tarefas. Depois, com o incômodo da história, comecei a perceber que muito deste astuto condenado estava presente na minha vida também.

O nosso cérebro se acostuma às repetições. Isto é excelente para alguns, como numa mudança de hábito. Mas é péssimo num “sedentarismo de sentido”. O perceber-se como o Sísifo já é um grande ganho para sair daquele lugar e nos realinharmos, caso seja esta a nossa intenção.

O autor do livro “O Pequeno Príncipe”, Antoine de Saint-Exupéry disse, no livro “Terra dos homens”, que “a prisão não está ali onde se trabalha com a enxada. A prisão está ali, onde o trabalho da enxada não tem sentido, não liga quem o faz à comunidade dos homens. E nós queremos fugir da prisão”.

Albert Camus escreveu um livro sobre este mito. Camus dizia que a vida é tão absurda, que cabe a Sísifo, para burlar este absurdo da vida, encontrar todos os dias uma nova maneira de subir com a sua pedra. Seja assoviando, cantando, ziguezagueando, sei lá.

Ao fazer isso, o espertinho do Sísifo daria uma lição ao “destino” a ele atribuído, dizendo-nos que mesmo que a vida nos pregue umas peças, sejamos mais espertos que ela e vamos fazer “do limão uma limonada” num dia, um mousse no outro. Sorvete e picolé também valem. É preciso acordar para ter a criatividade de viver.

Para ser mais claro, entenda o que Camus diz: “a própria luta para chegar ao cume basta para encher o coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.” A luta é, em si, o sentido que ele precisa para fazer a vida acontecer com significado. Ter pelo que ou por quem lutar.

No filme “A volta do todo poderoso”, um garçom, interpretado por Morgan Freeman, que na verdade é Deus neste longa-metragem, conversa com a esposa do “Noé de Nova Iorque”, aquele que recebeu a missão de construir, nos tempos atuais, uma nova arca para um dilúvio que viria a acontecer.

A esposa, em dúvida sobre o que o marido estava realizando, conversa com o garçom, que lhe pergunta: “Se alguém rezar pedindo paciência, você acha que Deus dará paciência? Ou Deus dará a oportunidade de ser paciente? Se pedirmos coragem, Deus nos dá a coragem ou a oportunidade de sermos corajosos? Se alguém pede que a família seja mais unida, acha que Deus une a família com amor e alegria ou dá a eles a oportunidade de se amarem?

Gosto desta parte do filme. Ela nos faz entender que nada está pronto, por mais que estejamos condenados a algo. A nossa postura frente àquela situação, como pregavam os filósofos estoicos, é que determina como vamos carregar a pedra e subir a montanha.

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