Estamos vivenciando alguns fenômenos que mudam completamente o contexto mundial, provocado pela pandemia, mas que já deixa um aprendizado e um legado incríveis. Cada dia assemelha-se, a grosso modo, a um jogo de tabuleiro, em que há a necessidade de pensar bem no que fazer, mesclar e dosar a emoção e a razão, mas que o conhecimento adquirido e a experiência, a maturidade, estão tendo que ser utilizadas, aprimoradas, recicladas o tempo inteiro, já que as regras não foram estabelecidas, ou a gente não as encontrou, na hora do início do jogo.
A miséria, que conhecíamos em notícias de televisão, mas que ONGs e movimentos sociais conhecem de perto, foram escancaradas, não que totalmente ainda, para que todos tenhamos consciência de que o Brasil é maior que a sala da minha casa ou o ambiente do meu escritório, os amigos da minha rede social, a “bolha” em que vivemos.
E olha que estou falando só da miséria social, pois nesses momentos acentuam-se a solidariedade e riqueza, mas, infelizmente, também grita a miséria humana, tão arraigada ao caráter.
Um jornalista, em rede nacional, ficou espantado com a reportagem que ele mesmo apresentava, dizendo que antes da pandemia, famílias compravam, com a renda que tinham, 2 sabonetes para passarem um mês, servindo a todos da casa.
O isolamento social deixou muita gente em seu conforto material, apesar da angústia e ansiedade, outros tantos preocupados com seus empregos e suas empresas, logicamente tudo muito legítimo. Mas as mídias descortinaram a realidade daqueles que não têm água encanada, assunto e problema recorrente há anos; muitos brasileiros não têm forma de fazer distanciamento físico numa casa em que 9 dividem um cômodo, com um banheiro do lado de fora. E a falta de saneamento básico?
A compreensão de que cuidar “dessas pessoas’ é cuidar das outras todas veio à tona, mas muito como um medo de que “eles” possam ser vetores na “minha” contaminação. É como se olhássemos pelo muro, apoiados nos dedos do pé, para ver algo que nos ameaça numa outra extremidade.
Não estou dizendo que eu tenho que me culpar por não morar num local desumano para sentir a dor do brasileiro. Não é isso, mas eu tenho é que entender que há essa dor, que ela é legítima e que devemos olhar não só porque esse cidadão doente pode infectar outros até chegar em mim. Mas, eu tenho que olhar porque é uma vida, é um ser, é uma pessoa, que não tem acesso a um programa de saúde bucal, a médicos em suas diversas especialidades, a alimentação especial para as crianças e idosos adoentados, a uma escola que não seja, na visão de uma criança de 4 anos, o lugar onde faz sua única refeição.
Temos que entender que a cor de pele, a orientação sexual, a ocorrência de uma doença rara, o avançar da idade não devem ser mais usadas para categorizar humanos em melhores e piores, certos ou errados. A pandemia poderia nos deixar como legado o respeito.
Nós estávamos esquecendo a importância da pausa, do olhar para si e para os outros, o entender o estado emocional de quem está na mesma sala de trabalho que eu. Muitos de nós nunca sentiu tanto a falta de um abraço, algo que pacientes hospitalares, que ficam dias internados, sabem o que é. A liberdade que alguns, livres, nunca viveu. Se hoje nos faz falta as ruas, imagine para os idosos de uma ILPI.
O viver em casa é novidade para alguns, mas lembram-se de que muitas pessoas com Down, autismo, cegos ou surdos não podiam sair de casa, estudar ou se relacionar, justamente porque não os cabia no mundo? Leiam sobre Nise as Silveira e veja o que tantos outros, tidos como loucos, mereciam ou merecem da sociedade.
Talvez o mais importante legado do momento atual não seja o de entender como as redes e a tecnologia podem nos aproximar, mas é ter a sabedoria para não distanciar.