O sol ainda nem tinha começado a se despedir quando eles já estavam postos de pé, sentados ou deitados nas calçadas, na rua de um albergue municipal que os abrigava durante a noite. Eram 400 vagas masculinas que em dias de frio e chuva se esgotavam rapidamente, atendendo aos que chegaram primeiro, deixando alguns outros na rua mesmo.
Lá dentro todos receberiam uma ficha indicando o quarto e a cama onde dormiriam naquela noite, uma toalha para o banho, uma ficha para o lençol e alimentação, além de um pequeno sabonete para o banho. No dia seguinte, após o café da manhã, ganhavam a rua de volta. Rua que os possuía, mas que era deles por empréstimo, pois vira e mexe era preciso migrar de local, levando consigo algumas sacolas e um cachorro, quando tinha.
A resistência em dormir num albergue vem muito dessas questões: deixar os animais na rua para pegá-los depois seria uma traição. Além de reclamarem de outras questões, inclusive dos indesejados percevejos, que vemos em filmes americanos e que por aqui não são coisa de ficção.
Para quem nunca passou por isso, é muito difícil imaginar-se em situação de rua. Numa recente e comovente entrevista do Paulo Coelho ao jornalista Pedro Bial, o mundialmente conhecido escritor brasileiro revelou que viveu um tempo assim, no fim da década de 1960, quando ele fugiu de uma casa de saúde, junto a um colega, onde havia sido internado pelos pais. Ele foi para a Bahia, ficou uma semana pedindo esmolas e passou fome, o que ressalta ser algo terrível.
Os outros moradores de rua comentaram para eles sobre uma freira que tinha uma obra social. Chegando lá, diante de uma fila enorme, havia uma irmã de caridade sentada, atendendo um a um. Quando foi a sua vez, a irmã perguntou o que ele precisava. Paulo Coelho a perguntou se ela tinha dinheiro, pois precisavam voltar ao Rio de Janeiro. Ela não tinha, mas pegou um caderninho e escreveu um bilhete com um pedido de duas passagens para que o funcionário da rodoviária pudesse conceder este favorecimento aos dois jovens. Já na rodoviária, o funcionário responde, após um muxoxo, que não tinha como negar um pedido da Irmã Dulce.
A irmã Dulce morreu em março de 1992, deixando um legado social e muitas histórias, tendo salvado muitas vidas e recebido o nome de “Anjo bom da Bahia”. Alguém que entendeu a mensagem Cristã e vivia entre os pobres e os desamparados. Em Belo Horizonte, trabalhando com as pessoas em situação de rua, há o Tio Maurício, que recebeu do bispo e amigo Pedro Casaldáliga a denominação de “pedagogo da proximidade”, pelo seu trabalho amoroso e incansável de uma vida inteira dedicada àqueles que vivem na invisibilidade.
Nascido em São Paulo, chegou a Belo Horizonte por acaso, em 1981. “Estava indo para viver no Bolsão da Seca, no Nordeste, e passei pela capital mineira. Estava amanhecendo na região da rodoviária, vi muitos papeleiros e sofredores de rua dormindo na calçada. Por esse motivo, senti que devia ficar um tempo na cidade”. Viveu três anos e meio nas ruas, como catador de papelão e há mais de 20 anos idealizou a Associação Casa Madre Tereza de Calcutá.
Para alguns que estão fora do problema, que apenas passam de carro, ou nos cantos das calçadas, pensam que todos que estão ali são malandros, que não querem buscar emprego, como se a oferta fosse farta. Para muitos, os que ali estão são viciados e por isso foram parar nas ruas, o que muitas pesquisas já negaram, dizendo que as drogas e o álcool vêm em função da rua.
O impacto na saúde social, emocional e mental é tão grande que muitos, mesmo conseguindo se reerguer e buscar uma oportunidade, sem um devido acompanhamento não dão conta e tendem a voltar para a rua. A questão é bem mais complexa e merece a atenção de governos, organizações da sociedade civil (que já fazem até muito com o pouco que têm) e dos demais poderes constituídos.
Fiquei motivado a escrever este texto após ver uma foto da Rua de Direitos, que aconteceu durante todo um sábado, em Belo Horizonte, recebendo a população de rua para atividades diversas: oficinas, cuidados pessoais e emissão de documentos, por exemplo. Do outro lado daquela fila que buscava dar àquelas pessoas um mínimo de dignidade, estavam universidades, entidades sociais e culturais, servidores públicos, unidos, como sempre deveria ser.
À frente da organização, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais que, através do Núcleo de Voluntariado, tem conseguido dedicar um olhar diferenciado para a população de rua. A desembargadora Maria Luiza de Marilac, que coordena o núcleo, abraçou para si esta tarefa e tem articulado com os diversos atores sociais uma aliança que é de grande importância para que mais e mais pessoas saiam da invisibilidade e tenham seus direitos atendidos.
Na mesma foto, onde estava a Angélica Lugon, do Inaper, instituição que se destaca no cuidado e educação desta população, também tinha, com a camisa do evento, o desembargador Luiz Carlos de Azevedo Corrêa Junior, atual corregedor-geral de Justiça, que a partir de julho será o novo presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), para o biênio 2024-2026. A sua presença ali é um forte indicativo de que a justiça tem que se ocupar da humanidade, demonstrando que estas causas merecem a atenção e a efetiva participação das autoridades constituídas. Se quem tem o poder não for à ponta para conhecer a realidade, ficaremos nadando eternamente no discurso destemperado e na burocracia.