Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Um chamado da alma

Publicado em 14/06/2024 às 06:00.

Toda vez que eu acabo de fazer uma palestra, algumas pessoas chegam perguntando o que é necessário para ser voluntário em alguma causa social. A vontade existe, mas o turbilhão do dia a dia faz com que a pessoa vá colocando outras prioridades na frente. E por falar nisso, acho que vamos ter que começar a escolher o que é prioritário dentre as nossas prioridades, do tanto de coisa que prometemos a nós mesmos, e aos outros, e não temos dado conta de cumprir.

Quando acontece uma tragédia, que provoca uma comoção geral, como a queda da barragem em Brumadinho ou as chuvas e enchentes do Rio Grande do Sul, milhares de pessoas se disponibilizam a participar das arrecadações, doar seu tempo, suas habilidades, até que o calor das emoções passe e muitos voltem para as suas rotinas. Em casos assim, isto é normal e segue o fluxo da ocorrência de toda calamidade.

No entanto, quando a gente fala de voluntariar-se para algo que seja contínuo, que aconteça com frequência, e não algo pontual, muita gente se diz apta e, tempos depois, afirma que não tem tempo agora, que o volume de trabalho aumentou, que uma pós-graduação está exigindo muito dela, que tem se sentido estafada com tantas atividades cotidianas, que repensou em tudo que está fazendo e precisa dar um tempo, dentre outras tantas questões, legítimas e importantes do ponto de vista daquele indivíduo.

E escolher é doloroso, mas é necessário. Dizer um “até breve” ou um “adeus” a um grupo voluntário é mais honesto do que abraçar uma causa e não se comprometer com ela. 

Para que a gente possa assumir um compromisso é necessário um certo conhecimento. Abrir um negócio em sociedade com alguém, começar o tratamento de uma doença com um novo médico ou numa nova clínica, tudo isso requer informações acerca do outro, para que haja uma relação de confiança e completude.  Nesses processos, e em tantos outros, conhecer a si, para saber o que de fato quer, e ao outro, é um ganho para a tomada de decisões. Depois, é preciso saber escolher. Assumir um compromisso requer escolher, tomar decisão.  Ao ir ao cinema, abri mão de ficar em casa ou estudar, por exemplo.

No voluntariado não é diferente: você assume o compromisso livremente e agora acredita-se que você vai cumprir com este compromisso. Uma vez que você se comprometeu, se não comparecer, você vai gerar um prejuízo, um problema para todo um grupo de pessoas. E não adianta pedir desculpas depois, pois toda a ação acaba sendo colocada em risco em razão da sua falta num compromisso assumido. Ter ciência disso é fidelidade, é não trair o grupo com o qual você se comprometeu.

Por isso é que a gente precisa de um entendimento maior do sentido de coletividade, que não é praticado apenas em momentos de crises humanitárias, em campanhas de doação de sangue ou de agasalhos. Esse sentido deve permear a prática diária, nos hábitos que desenvolvemos, na nossa fala, na interação com o outro, no que a gente posta em redes sociais. Não estou pedindo que sejamos perfeitos, pelo menos por enquanto, mas que sejamos despertos, entendendo nosso lugar por aqui, desde as coisas mais rotineiras, como colocar um saco de lixo para fora de casa.

Pensar no outro nos faz menos individualistas, menos egoístas, e isto é um exercício, uma virtude que deve ser praticada.

Seguindo o exemplo acima, em muitos lugares é sabido o horário e o dia que o caminhão de coleta passa. Se a gente se atrasa e coloca o lixo pra fora depois, transferimos o incômodo para os outros, por uma irresponsabilidade nossa. Ou se acondicionamos coisas demais num saco de lixo e colocamos para fora de casa já transbordando, quem passa para recolher terá dificuldades. 

São coisas bem simples e que não fazem mal quando nos atentamos para elas, mas que nos ajudam a tirar o olhar apenas das nossas reclamações, dores, cismas, dificuldades e passar a entender que somos apenas uma pequena – mas importante e única – partícula desse mundo, que possui um tanto de outras partículas existindo por aí.

Por isso é que a gente tem que aprender a ser voluntário. 

Num dia desses, durante a minha caminhada noturna, ouvia o podcast da escola de Filosofia Nova Acrópole, em que o convidado dizia que o trabalho nos dá a condição de pagarmos as nossas contas, realizarmos os nossos sonhos e nos garante os elementos mínimos para a nossa sobrevivência. Só que,  para o ser humano, só a sobrevivência não é suficiente. Ele pode sobreviver e não estar se alimentando daquilo que o humanize.

O trabalho voluntário, o trabalho generoso, é algo próprio da condição humana. É quase uma vocação, afirma o professor José Roberto, de Nova Acrópole. Vocação é um chamado da alma para que o ser humano se atente para que ele precisa de conhecimento e sabedoria extraídas, tantas vezes, do contato “desinteressado” com o outro. É preciso colocar as melhores energias para alimentar esse chamado da alma e isso passa pelo entendimento do compromisso e da responsabilidade que assumimos com uma pessoa, um grupo, uma instituição. Mas, para além disso, é o compromisso de devolver ao universo o tanto que ele nos tem dado. É, e deve continuar sendo, um chamado da alma e não uma passageira, descompromissada e egoística vontade descabida, que ignora o outro e a coletividade.

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