Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Um simples “boa noite”

28/01/2022 às 08:16.
Atualizado em 30/01/2022 às 01:07

Todos os dias eu faço caminhada à noite. Não é um hábito que eu tinha, infelizmente, mas a necessidade e o alerta do meu vestuário lutando para entrar no meu corpo me fizeram deixar a preguiça de lado e sair de casa. Vou confessar que se eu for parar para pensar, acho mil desculpas: frio, calor, cansaço, trabalho, leitura e por aí vai.

Assim, resolvi vestir a roupa, ainda que apertada, pegar um aparelhinho antigo que eu tenho para ouvir minhas músicas selecionadas e sair, sem pensar. Eu geralmente faço isso após as 22 horas e devo caminhar uns 40 minutos.

Antes de sair é um suplício, mas estando na rua, a caminhada é uma delícia. Observo a arquitetura da cidade, aproveito para fazer os exercícios vocais que a minha fonoaudióloga passou e vou caminhando e cantando, literalmente.

Coloco as músicas bem altas e ando, na verdade viajo, naquilo que vou ouvindo. Passo por bares lotados, batendo palmas no ritmo da música – ao menos suponho que eu esteja no ritmo. Canto sem medo de ser feliz, o que deixa mais leve a minha alma do que o próprio corpo em si.

Um dia, passando em frente ao fórum de Belo Horizonte, no lado inverso de sua calçada, estava cantando: “apesar de termos feito tudo, tudo ....”. Um senhor, 64 anos, sentado numa caixa de papelão, com uma manta cobrindo as pernas, olhos vigiando algo num fogareiro improvisado no meio fio, impulsivamente me pergunta: “É Elis?”.

Como eu estava com o volume alto, não ouvi a pergunta. A perna já andando sozinha, pelas ruas “conhecidas”, deram uns passos a mais até que eu me atentasse para sua pergunta e voltasse, falando com ele: “opa, tudo bom? Não entendi”.

Ele repetiu: “é Elis, né?”

Eu disse que sim, que gostava muito das músicas de Belchior e que “Como nossos pais” na voz da Elis me sugava do agora e me jogava ali, na plateia, anos atrás. Lógico que não falei assim, mas é o que pensei depois, analisando como que a música consegue nos transportar no tempo.

Ele me disse que gosta muito de MPB e, também, das músicas do Belchior.

Começamos uma conversa rápida e eu o perguntei, despretensiosamente, na verdade curiosamente, o porquê de ele não ir a um albergue para ter um pouco mais de “conforto”. Ele explicou que lá tem muito percevejo e que no dia seguinte tem que comprar remédio para as feridas causadas pelo incômodo companheiro dos beliches dos albergues. E, para o remédio, ele não tinha dinheiro.

Aí perguntei se a rua era fria, pois eram 22h30, aproximadamente, e não havia mais ninguém transitando, até mesmo os carros eram escassos. Ele me explicou que por ali ficam os garotos de programa e alguns carros que passam são para vê-los, por curiosidade ou interesse no que têm a oferecer.

“Se a rua era fria? Sim”. E ele usou uma metáfora para explicar:

“Aqui parece um universo. Eu fico só observando. As pessoas passam pra cima e pra baixo, no celular, cabeças baixas, talvez buscando o chão para não caírem. Elas passam como planetas, sem se tocarem, se cumprimentarem, um planeta indo e outro vindo”. Nessa hora ele mexia lentamente com as mãos para mostrar os movimentos do que me contava.

E continuou: “as pessoas ficam muito detidas em si mesmas, parece que elas se fecham aos outros. E acho que isso aconteceu comigo também, fui me fechando. Eu não mexo com ninguém, só te chamei porque empolguei com a música e num impulso te perguntei”.

Mas, aí vem o algo que me impactou nessa conversa. Ele disse: “também te perguntei porque sei que ninguém me ouve. Quando vi que você ouviu, rezei para você desistir e voltar para o seu caminho. Eu acho que eu também acabei me fechando em mim mesmo”.

Por certo as pessoas que passam pela avenida Augusto de Lima não vão sair cumprimentando umas às outras. Eu também passei por ele, tarde da noite, sem ninguém na rua além de nós e o ignorei.

Claro, essa é uma conversa, ou um fragmento dela, que tem muito mais riqueza em seu contexto. Mas saí dali pensando no quanto de história há em cada vida que cruza os nossos caminhos.

Lembrei de uma experiência que li a respeito da biblioteca humana da Dinamarca, que completa 22 anos em junho. Em amplas salas, ou por seus espaços abertos, os seus frequentadores vão para “ler” em vez de livros, pessoas. São voluntários, geralmente de grupos estereotipados da sociedade, como diz Belchior na música alucinação: “um preto, um pobre, um estudante, uma mulher sozinha”, todos carregados de histórias de suas vidas para compartilharem com quem queira aumentar sua riqueza cultural.

Fico ainda mais animado, agora, nas caminhadas, ao passar por algumas pessoas nas ruas e cumprimentá-las: famílias em frente aos hospitais por onde passo, motoristas de ônibus nos pontos finais, moradores de rua e garotos de programa.

Percebi que a maioria olha com desconfiança ou susto, outras dão um boa noite cheio de vigor, outras nem respondem, talvez até sem reação. Mas, o mais engraçado, é que são reações bem diferentes para um simples “boa noite”.

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