Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Uma longa viagem

Publicado em 28/10/2022 às 06:00.

Quando eu embarquei em Januária, na região do médio São Francisco, meu destino era a cidade de Chapada Gaúcha, em Minas mesmo, onde já estive uma vez e de onde carrego boas recordações.

Creio que há uns cinco anos estive por lá, num evento promovido pelo Sebrae e pela Prefeitura Municipal. Antes, porém, ofereci à secretária de educação uma palestra voluntária para os alunos da rede municipal de ensino. Reunidos na antiga Câmara Municipal estavam meninos e meninas, vindos a pé ou nos ônibus escolares, acompanhados de professores que os traziam direto das escolas.

Ao final da fala, um grupo de crianças e adolescentes gratos se despediu. A noite seria a atividade para a qual fui contratado. No fim do dia, estava na avenida principal da cidade esperando um ônibus de volta para casa e os pré-adolescentes que passeavam de bicicleta paravam para me fazerem companhia, conversar ou comentar alguma coisa da minha fala naquela tarde.

Quando entrei no ônibus em Januária, voltando pela segunda vez à Chapada, estas lembranças de um povo acolhedor me tomaram conta. Sentei-me na última poltrona e reparei que o ônibus era tão velho, que as numerações das cadeiras saltavam do nicho que as abrigava, os cintos mal se encaixavam, as poltronas afundavam com o peso dos passageiros, as janelas ficavam abertas para não sobrecarregar o ar-condicionado, a estrada é de terra e naquele dia havia chovido, então o sacolejar era certo.

Em cada ponto, que nem parecia uma parada de ônibus, as pessoas entravam sorridentes, cumprimentando umas às outras. Como meu embarque foi às 17h, vi na estrada um pôr-do-sol lindo, deixando o céu vermelho em meio à vegetação grata por aquela chuva de mais cedo.

Num determinado momento entraram duas senhoras falantes, animadas, com bacias cobertas com pano de cozinha, passando de poltrona em poltrona e vendendo pão de queijo. Uns compravam e guardavam para uma próxima parada onde pudessem comprar café. As paradas eram em pequenas mercearias ou bares, em que famílias esperavam juntas pelo ônibus, que sempre atrasa. Ali, passageiros desciam para urinar na traseira do ônibus, familiares se despediam, bagagens eram despachadas.

Dois motoristas conduziam o veículo, revezando a função de condutor e trocador. Atenciosos, educados, conversados, eles conheciam boa parte de quem embarcava e fariam o trajeto completo, ou parte dele, naquele ônibus que iria de Januária a Goiás, percorrendo estrada adentro por muito mais de doze horas.

Uma árvore com uma lâmpada improvisada era ponto de parada, uma casinha de alguém também era. Quem acenava para o ônibus, não ficava para trás.

Um passageiro bêbado, exalando cachaça, entra com duas crianças. Dorme, cai, continua a dormir. Já chegando ao meu destino, várias pessoas viajavam em pé, como já que acostumadas. Quem entrava com passagem, reclamava de quem vinha sentado na sua poltrona e achava ruim de se levantar.

O banheiro estava bem atrás de mim, mas ninguém o usava. Desciam nos pontos ou na estrada para urinar, mas o banheiro do ônibus permanecia intacto, apenas barulhento, sentindo o impacto de cada buraco pelo qual passávamos.

Passageiros abriam vasilhas e começavam a se alimentar. Um cheiro bom, mas nada uniforme, invadia o ônibus. A pet de água passava de um para outro, que davam goles sem encostarem a boca no bico.

Num determinado momento uns conversavam com os outros, diziam de quem eram filhos, nos que os outros falavam que conheciam os seus avós e pais. Daí, perguntavam por parentes, contavam histórias passadas e outras recentes.

Uma viagem de seis horas, prevista para quatro, tinha tudo para ser horrível, mas as pessoas transformaram aquele ambiente. Acostumadas com aquele trajeto, gratas por terem aquele ônibus que as transportava, já que acho não têm muitas opções para estes deslocamentos, o povo estava animado.

A cada descida, um “com Deus” ecoava no ônibus todo. Nos rostos, nos sorrisos, na fala bem mineira, nos casos contados, tudo refletia uma singularidade de um povo que carrega uma riqueza de cultura e histórias.

No final da minha viagem, e metade de muitos deles, conversei com os motoristas durante uma parada mais longa. Cada um com um punhado de casos para contar, de gente batalhadora que usa este ônibus para ir trabalhar, ir a Brasília fazer tratamento de alguma doença, visitar a família em locais bem distantes ou, simplesmente, para o deslocamento para algum trabalho.

Lembrei do mito de Sísifo, em que aquele trajeto poderia ser uma penúria, mas que as próprias pessoas, na sua maravilhosa habilidade de se relacionar, a transformam em algo que faça sentido para si próprias, burlando, como dizia Camus, o absurdo que seria todo aquele cenário escasso de conforto.

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