O hábito da leitura talvez ele tenha herdado da avó, que o presenteava com livros infantis até uma certa idade e, depois, foi lhe dando livros de adultos, como ele mesmo me disse. Então, Machado de Assis não foi uma leitura obrigatória da escola, foi uma obra apreciada com facilidade por um pré-adolescente.
A avó era professora de uma escola pública e, apesar da rigidez na criação dos filhos, e dos netos por carona, tinha um afeto que só as avós sabem ter. Os pais queriam que ele fosse médico, afinal, o menino gostava de estudar. A avó queria que ele fosse professor, dando sequência ao importante ofício já praticado por alguém da família.
Esta criança sonhava! E como sonhava. O menino dizia que quando crescesse seria dono de uma biblioteca, mas não é daquelas de poucas estantes num escritório, não. Ele queria ser dono de uma “biblioteca pública”, onde ele recebesse os amigos da escola como em sua própria casa.
Apesar do afeto pelas letras, ele foi cursar Engenharia Agrícola numa das mais respeitadas e concorridas faculdades do Brasil, a Unicamp. Dali, muitos alunos já saiam empregados e foi o caso dele. Contratado por uma multinacional, começou por lá antes mesmo de se formar, numa vaga como as de trainees, se não estou equivocado. Cresceu na empresa. Depois foi para outra multinacional, tendo mais experiência e já começando a constituir a sua família.
Casado e apaixonado pela esposa, veio o primeiro filho. Depois mais dois. Uma família estruturada financeiramente, com uma base de carinho bem grande, mas numa certa dependência emocional daquela mãe, que acolhia a todos e era o sustentáculo do núcleo familiar.
Após vinte anos de casamento, algo que todos sabemos, mas ninguém espera, deseja ou está preparado vem para impactar a vida da família: aquela esposa amável e mãe acolhedora é vítima de uma doença, que mesmo tendo ficado pouco tempo, foi cruel o tempo em que permaneceu e levou muito rápido aquela mulher. Rápido, mas de maneira bem dolorosa, pois o sofrimento físico já a cansava e a fazia, talvez sem perceber, entregar-se de vez à morte. Eles, vendo a dor de quem amavam, tentaram segurá-la por aqui. Ele, o marido, muito mais que os próprios filhos, mas não teve jeito, ela morreu.
Lembro de uma passagem do livro da Djamila Ribeiro, Cartas para a minha avó, em que ela relata o dia que estava no hospital, cuidando do seu pai, que já não tinha mais muito fôlego de vida. Com tantas perdas na família, Djamila o segurava como podia. Num dia, as enfermeiras a chamaram num pequeno quarto de descanso e disseram para ela deixar o pai ir embora, ele precisava disso. Ela desaguou em choro, numa dor sem igual, que levou junto todas as vezes que alguém disse a ela que ela precisava ser forte.
Aquele homem também ouviu isso: “seja forte, a vida continua”; “ela não ia gostar de ver você assim”; “pense nos momentos bons que vocês viveram juntos”; “ela descansou”.
A cada frase bem-intencionada, ele nutria ainda mais raiva daquilo tudo que acontera. Até um dia que ele não estava aguentando tanta dor e precisou se esconder. O álcool foi o escudo perfeito e mais acessível. A dor desaparecia por uns instantes, tempo em que ele desacordava, caindo na porta de bares que antes ele nunca havia passado.
A empresa, depois de dezoito anos de trabalho, não viu outra saída a não ser dispensá-lo, como ele mesmo me afirma. O dinheiro de anos de trabalho, pelo que entendi, não foi suficiente por muito tempo para pagar todas as contas da sua bebedeira. Mas, à essa altura, ele já morava nas ruas. Ele saía para beber, o que fazia desde o primeiro momento do dia, aí caía nas calçadas, lá ficava dormindo, sem noção de dia e noite. Para que voltar para casa, se ao acordar ele queria era fugir de novo?
A família tentou até que cansou e deixou para lá. Não sei se desistiram, mas o fato é que eles deixaram de ir às ruas em sua captura. Aquele homem estava malcheiroso, maltrapilho, maldito. Sim, só podia ser uma maldição da vida, que lhe deu tudo de início, mas tirou num único solavanco.
Esgotado, ele resolveu procurar uma instituição que pudesse abrigá-lo. Ele tinha vergonha de todos a quem ele fez sofrer, por isso, voltar para a sua casa depois de tudo que ele submeteu os filhos seria quase impossível. Tinha ainda a ausência da esposa: voltar para aquela casa e não ver a esposa não era algo a se considerar, agora.
Dentro da instituição ele encontrou profissionais que o olhavam na sua dor, mas que não o tratavam como a uma criança. Ele era consciente de que deveria ser tratado como um adulto adoecido.
Hoje ele está sem o álcool há um bom tempo, se restabelece, ainda sente alguns impactos do abuso da bebida em sua mente e corpo, mas está em busca do equilíbrio, sabendo que o caminho ainda será árduo. Quando eu o perguntei se ele tinha algum sonho, a resposta foi ver a neta, ainda criança, se formar na faculdade, o que demonstra que ele já consegue voltar a pensar em perspectiva, coisa que o vício tira de muita gente.