Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Vitória coletiva e libertadora

20/05/2021 às 14:21.
Atualizado em 05/12/2021 às 04:58

Todos os dias eu acordava bem cedo para preparar meu material e ir dar aula numa escola de ensino fundamental e médio em Santa Luzia, na região metropolitana de BH, onde eu morava. No fim da manhã eu corria para o ponto de ônibus, enfrentando um trânsito pela avenida Antônio Carlos, uma das principais de Belo Horizonte, numa época em que o Move (transporte integrado) não existia nem em sonho.

Meu almoço era no ônibus mesmo. Eu fazia estágio em Comunicação Social no turno da tarde, na Caixa de Assistência Social, Desportiva e Cultural dos Servidores da faculdade em que eu estudava, por isso, encerrando o turno do estágio eu só precisava atravessar a rua e já estava em sala de aula, em meu lugar de aluno.

Um dia, sabendo que eu lecionava numa escola em Santa Luzia e era estagiário naquele Centro Universitário, uma Pró-Reitora me chamou e perguntou se eu sabia quantos funcionários havia naquela instituição sem saber ler e escrever e, também, sem a conclusão do ensino fundamental.

Pedi uns dias para levantar a informação junto ao “Departamento de Pessoal” e o resultado foi assustador. Não me recordo bem o número, mas daria para encher uma sala de aula com quem não sabia, ou sabia mal, escrever o seu próprio nome, assinar um contracheque, ler corretamente o letreiro do ônibus ou o seu extrato bancário.

De imediato a Pró-Reitora determinou que eu buscasse um projeto de educação voltado para os funcionários, prioritariamente, podendo atender também aos colaboradores das empresas terceirizadas.

Estávamos em 1997 e encontrei as informações que eu precisava numa das escolas do Senai, através de um projeto da Fundação Roberto Marinho, o “Telecurso 2000”. Eram fitas de vídeo-cassete contendo as aulas de cada disciplina que teríamos que reproduzir aos nossos alunos.

A faculdade liberou duas salas de aula numa casa próxima, porém muito ruins, cheias de mofo no teto e nas paredes. Percebi que não conseguiria recursos para as reformas e para equipar adequadamente os ambientes que tínhamos. Começamos a divulgação e inscrições, conversando com as pessoas em cada setor, explicando como funcionaria, pedindo para que não perdessem aquela oportunidade. Eu falava com eles que seria um esforço ficar além do horário de trabalho ou chegar antes para estudar e contava minha batalha para trabalhar de manhã, estagiar à tarde e estudar à noite.

Em questão de dias já tínhamos duas turmas prontas para iniciarem à tarde e outras duas à noite, já que alguns funcionários trabalhavam em turnos.

Só que a gente ainda tinha uma sala velha e com equipamentos defasados.

Aí que veio a ideia de reunirmos todos os inscritos e falarmos que o mais difícil, que era o contrato com o Telecurso 2000, nós já tínhamos conseguido.

Os monitores das aulas seriam alunos dos cursos de Matemática, Letras, História, Pedagogia do Centro Universitário que, em forma de estágio, assumiram esse compromisso. Expliquei que faltava uma infraestrutura mais adequada, mas que já começaríamos prontamente.

Na reunião estavam funcionários da cantina, faxina, manutenção, carpintaria, gráfica, zeladoria, segurança, auxiliares de audiovisual, etc. Muito animados, eles começaram a falar: “nós podemos ficar além do nosso horário para reformar as salas”, diziam os pedreiros; os eletricistas falaram que há muita sobra de material e eles se encarregariam de pedir esses recursos para consertar a parte elétrica; os funcionários do audiovisual ficaram de pedir ao chefe deles a doação de televisores, videocassetes e retroprojetores, já que novos equipamentos chegariam para as salas da faculdade.

Mas não parou por aí: o responsável pela segurança remanejaria um funcionário para cuidar das salas à noite e acompanhar a saída dos nossos alunos; o pessoal da cantina levaria o lanche, os da reprografia fariam as apostilas.

O resultado foi que inauguramos uma escola que começou com duas salas e depois ganhou banheiros independentes, pátio, mais duas novas salas, além de uma sala dos professores, tudo conquistado conjuntamente.

No dia da primeira formatura um segurança chegou perto de mim e disse que assinar uma carta, redigida por ele, para a filha que mora no interior, era algo que ele nunca imaginou que seria possível.

Mais tarde já atendíamos filhos, cônjuges e até pais dos nossos funcionários, que nos deram a alegria de participar da vida deles. Nós entendemos que num esforço conjunto, sem vaidades, a vitória é coletiva e no caso da educação, libertadora.

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