Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Vivendo e morrendo sozinhos

Publicado em 13/12/2024 às 06:00.

Em uma manhã abafada, numa rua agitada de uma pacata cidade mineira, uma triste descoberta trouxe à tona um tema inquietante. Dona Maria de Lourdes, uma mulher com pouco mais de sessenta anos, foi encontrada em sua casa, sozinha, dias após seu falecimento. O cheiro do corpo em decomposição foi o primeiro sinal de sua ausência. Ela morava em uma casa que sobrevivia em meio a pontos comerciais, numa rua de movimento quase constante. Tinha irmãos, primos e uma história marcada por opiniões fortes e distâncias emocionais. Mas, quando a notícia chegou aos parentes, a surpresa era mais pela fatalidade do que pelo isolamento. "Ela sempre foi reservada", disseram. "A gente se distanciou com o tempo", completaram outros. “Olha o que a gente acaba fazendo: por algumas desavenças, se afasta de alguém da família e, quando descobre, o fim é esse. Triste para quem foi e para quem fica”, sentenciou uma prima.

Histórias como a dela, infelizmente, não são raras. No Brasil e no mundo, surgem relatos de pessoas, principalmente idosos, que são encontrados mortos em suas casas, às vezes meses ou anos depois. Em Tóquio, na metrópole ultraconectada, o fenômeno é chamado de kodokushi, ou "morte solitária". Vizinhos começam a notar contas não pagas, o silêncio das janelas, o cheiro que invade os corredores. Na Itália, na França, no Reino Unido, o padrão se repete: pessoas idosas, vivendo e morrendo sozinhas, passam despercebidas até que o odor ou a preocupação tardia desperte um familiar ou conhecido, trazendo-o à consciência da falta da pessoa. Isso quando sua ausência é notada, e, a partir daí, alguém toma a iniciativa de ligar, mandar uma mensagem ou procurar saber sobre a pessoa, há tempos tão distante.

Li um livro chamado As boas mulheres da China, da jornalista Xinran, que, entre 1989 e 1997, entrevistou mulheres de diferentes idades e condições sociais, a fim de compreender a condição feminina na China moderna. Seu programa de rádio, Palavras na brisa noturna, discutia questões sobre as quais poucos ousavam falar, como vida íntima, violência familiar e opressão. Xinran selecionou inúmeros relatos de mulheres em que predominam a memória da humilhação e do abandono: estupros, casamentos forçados, desilusões amorosas, miséria e preconceito. Há o caso de uma menina que, abusada em casa, foi parar em um hospital e fez amizade com uma mosca. Era uma relação de posse, na verdade, mas a mosca era sua única confidente.

No caso de Maria de Lourdes, sua morte foi percebida mais cedo, em comparação a alguns casos pelo mundo afora,  mas, ainda assim, tarde demais. Mas o que leva pessoas com parentes vivos a viverem isoladas a ponto de ninguém notar sua ausência? “Era do jeito dela, sabe?”, explicou um primo. “A gente não se dava bem, então ela preferia ficar no canto dela.” Esse "canto", no entanto, foi se transformando em um abismo. Era mais fácil evitar conflitos, mais cômodo deixar o tempo passar, até que a ausência dela se tornou invisível.

O isolamento social, que antes era um tema ligado apenas à solidão física, ganhou dimensões mais complexas. Especialistas apontam que a falta de conexão emocional e social é o que mais contribui para a solidão no envelhecimento. Não importa quantos amigos ou familiares estejam tecnicamente disponíveis — a solidão verdadeira é a ausência de pertencimento.

Em outro canto do mundo, em Madri, na Espanha, a história de Isabel, uma aposentada de 78 anos, ilustra essa questão. Ela foi encontrada no banheiro de sua casa após sua morte. Mas o caso chama ainda mais atenção, como relatado na revista Galileu, em outubro de 2019, porque aquela senhora foi encontrada 15 anos após sua morte. Contas em débito automático e uma pensão sendo depositada impediram que alguém desse falta de Isabel a ponto de procurá-la.

Também na Europa, segundo o UOL Internacional, um cadáver de um padeiro aposentado permaneceu intocado por oito anos no apartamento onde ele morava em Senden, na Alemanha, sendo descoberto por acaso, devido a um incêndio. Heinz, morto aos 59 anos, foi encontrado ao lado do corpo de seu cachorro, que provavelmente morreu de fome.

Muitas dessas vidas eram preenchidas por rotina e silêncios. Alguns desses funerais não contaram sequer com a presença de familiares. Isso diz muito sobre como situações diversas — multifatoriais — levam à solidão na velhice: pode ser abandono, distanciamento, brigas, perdas de familiares e amigos, uma vida sem muito convívio social ou tantas coisas mais.

Essas histórias levam a, ao menos, uma reflexão: em tempos de conectividade virtual, parece que as conexões reais estão ficando para trás. Numa sociedade que glorifica a produtividade, a falta de tempo e a agenda lotada, muitos idosos acabam optando por não incomodar. E assim, o isolamento se perpetua — às vezes por escolha, às vezes por negligência mútua.

Talvez o caso de Maria de Lourdes seja uma reflexão sobre os relacionamentos que escolhemos ou abandonamos ao longo da vida. A solidão, afinal, é também uma construção coletiva, feita de ausências e desencontros.

E, quando o telefone toca apenas depois que é tarde demais, surgem as perguntas que ninguém quer responder: como chegamos aqui? E, principalmente, como podemos sair?

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