Era início de outubro quando a vida de Adalberto teve uma mudança radical. Nascido em uma cidadezinha do interior de Minas Gerais, cercada por montanhas e banhada por um rio que, no passado, já foi cheio de peixes e pescarias e que parece guardar os segredos daquele tempo, Adalberto era filho único de um casal dedicado, de família tradicional e muito conhecida na cidade. Cresceu cercado de amor e oportunidades. Formado em Administração, aos 35 anos já ocupava um cargo importante na cooperativa agrícola da região.
Porém, a vida, às vezes, dá reviravoltas que abalam a estrutura de qualquer ser humano.
Em uma manhã de domingo, Adalberto perdeu seu grande amor, Ana Clara, em um acidente trágico. Os jornais e os moradores locais diziam que era ele quem estava dirigindo e, pelo que parecia, havia adormecido ao volante.
Esta versão não foi comprovada pela polícia. Parece que um animal atravessou o caminho, e o Adalberto fez o que pôde para salvar suas vidas.
Ele não conseguiu reconhecer o corpo, nem foi ao velório e ao enterro. Aquela mulher, que o ensinara a sonhar e com quem planejava um futuro, se foi, e ele ficou com a culpa e a dor intermináveis. Foi como se um vazio tomasse conta dele, sugando a vitalidade que antes era sua marca registrada.
Nada fazia sentido: nem o trabalho, nem o afeto dos pais, nem os amigos, nada na vida. Ele só queria fugir de tudo.
E foi o que fez. Um dia, sem avisar os pais e amigos, Adalberto pegou um ônibus para Belo Horizonte. A capital, com seu ritmo frenético e anonimato acolhedor, parecia o esconderijo perfeito para quem carregava tanta dor e culpa. No entanto, em vez de cicatrizar feridas, o cenário urbano apenas intensificou sua queda. Correria, insensibilidade, descrença. Na verdade, o problema nem estava no ambiente, mas nele próprio. O ambiente apenas fez a sua parte. Ele mergulhou no álcool como quem busca um abraço que não se encontra mais. O vício o consumiu rapidamente, roubando sua dignidade e jogando-o nas ruas, literalmente.
Durante meses, Adalberto perambulou pelas avenidas movimentadas e dormiu embaixo de marquises nos bairros Floresta, Lagoinha e Centro, e sob viadutos da cidade. Rejeitava qualquer oferta de ajuda, conversava pouco e não se integrava com as outras pessoas em situação de rua.
Todos os dias, um homem de uniforme laranja passava pela rua onde Adalberto dormia. Era Seu Geraldo, funcionário da limpeza urbana, que nem era tão velho para merecer o título de “senhor”. Um homem alfabetizado tardiamente, que varria aquele trajeto enquanto cantarolava músicas sertanejas e cumprimentava quem passasse por ele, conhecesse ou não quem estava pelo caminho. Geraldo carregava uma sabedoria de vida que parecia saltar de seus olhos. E muita humildade, aprendida no contato com o outro.
“Eu via aquele rapaz lá, largado, com o olhar perdido. Um dia, parei e falei: ‘Moço, precisa de um cobertor?’. Ele respondeu que não, mas começou a chorar”, relatou Geraldo. A partir daquele dia, os dois passaram a conversar todas as noites. Geraldo contava histórias de sua infância humilde em Montes Claros e dos desafios de criar três filhos com o salário modesto de gari, profissão que seguiu quando veio para BH. Ele também compartilhava lições simples, mas poderosas, sobre fé e recomeços, sem vinculação com religiões, já que ele próprio acreditava em Deus, mas não se dedicava a cultos ou templos.
“Ele dizia que eu era melhor do que aquilo, que eu só precisava acreditar em mim. Foi o Geraldo quem me lembrou que eu tinha uma família esperando por mim lá no interior. Ele falava: ‘Vai, rapaz, antes que seja tarde. Pai e mãe não esperam pra sempre. Se dê ao direito do reencontro, do recomeço. Quem te ama vai te receber’”, recorda Adalberto, emocionado.
A insistência de Geraldo foi como um empurrão decisivo. Adalberto pediu ajuda a uma instituição no bairro Lagoinha, em BH, e buscou forças para se internar em uma clínica de reabilitação, onde passou seis meses enfrentando seus demônios. Hoje, passados cerca de dez anos desse convívio entre os dois, Adalberto se dedica voluntariamente a um projeto social voltado para a recuperação de dependentes químicos. Ele nunca esqueceu Geraldo, com quem conversa sempre. “O homem que varria as ruas limpou também minha alma. Foi o maior professor que eu tive, porque me falou de humanidade e com humanidade”.
As conversas dos dois se assemelhavam ao encontro de filósofos, que falavam de coisas que não tinham respostas, mas que se “perdiam” em boas reflexões. Até que um dia Adalberto se reencontrou. Com a ajuda de uma ONG e, quando se sentiu restabelecido, conseguiu a passagem para voltar para o interior. Na sua cabeça, reviver a perda e a culpa era inadmissível até então.
Mas os fantasmas precisam ser exorcizados.
Adalberto sempre diz que a vida na rua teria sido muito mais ingrata se não tivesse o Geraldo como companhia. E lembra do dia em que se despediram, quando o amigo gari sorriu e disse: “Agora é com você, meu amigo. Vai e busque se reencontrar com pessoas, situações e lugares que contam a sua história, a sua verdadeira história”.
E Adalberto foi.