A questão polêmica do aborto, num país em que a Igreja Católica mantém forte influência política, deveria ser examinada sob a ótica da saúde pública, não da religião. O papa Francisco e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil são contra a legalização do aborto, ao contrário do Conselho Federal de Medicina. A Organização Mundial da Saúde estima que 21,6 milhões de abortos inseguros foram realizados no mundo em 2008 – último dado disponível –, dos quais 4,2 milhões na América Latina e Caribe.
Conforme o Código Penal, a mulher que provocar aborto ou consentir que outra pessoa o faça pode ser punida com pena de detenção de um a três anos. O médico que pratica aborto também pode ser preso, a não ser em raros casos autorizados pela legislação.
Além da ótica religiosa ou de saúde pública, o aborto envolve uma questão prática: como cumprir a lei e manter na prisão todas as mulheres que recorrem ilegalmente ao aborto? Há estimativas de que ocorram no Brasil aproximadamente 1 milhão de abortos por ano. Quantos presídios femininos deveriam ser construídos para que a punição prevista possa ser aplicada? E em quanto deveriam ser ampliados os efetivos da polícia e do Judiciário, para forçar o cumprimento da lei?
Os defensores da proibição do aborto alegam que estão defendendo a vida. Pouco importa que essa vida preservada contra a vontade da mãe esteja condenada à miséria e que venha a agravar ainda mais o problema dos direitos humanos desrespeitados. A mulher tem sido uma das grandes vítimas desse desrespeito. Foi árdua a luta delas para conseguirem se equiparar aos homens nas nações mais desenvolvidas.
E a Igreja Católica que condena o aborto – e nega à mulher o direito ao sacerdócio – demorou muito a apoiar a luta contra a escravidão de negros no Brasil. E se omitiu quando os nativos da América Central e das Antilhas foram massacrados, na maioria, pelos recém-chegados espanhóis. Em todas essas ocasiões, ela se amparava em questões morais que depois, com o avanço da civilização, tiveram que ser revistas. Chegou a hora de fazer o mesmo em relação ao aborto.
Não se defende aqui a prática pura e simples do aborto, muito menos os proventos que os médicos possam vir a ter com essa prática legalizada. Defende-se o direito de a mulher continuar viva, quando não for possível demovê-la da decisão de abortar, nas primeiras 12 semanas, um filho indesejado.