Preconceito, mesmo velado, impede acesso maior da população trans ao mercado de trabalho

Tatiana Moraes
26/07/2019 às 20:26.
Atualizado em 05/09/2021 às 19:43

(Ana Carvalho/Divulgação)

Muitas portas do mercado de trabalho estão fechadas para a população trans. Vítimas diárias do preconceito, mesmo que velado, essa parcela da sociedade tem dificuldade para se manter na escola e até mesmo permanecer nos núcleos familiares. Como resultado, poucos têm qualificação e a esmagadora maioria (cerca de 90%) recorre à prostituição. Quem supera as barreiras sociais e educacionais acaba esbarrando na repulsa das empresas, que dão preferência para contratar os considerados “normais”. 

Não é à toa que 50% dos LGBT escondem a orientação sexual, conforme pesquisa da rede social Linkedin. Outros 25% contam para algum colega e o restante omite a informação. O motivo é o medo da discriminação. O problema da população trans é que dificilmente eles conseguem esconder a mudança de gênero. 
“O preconceito antecede o mercado de trabalho. Quando eles chegam para fazer a entrevista, não há como fingir. Não há como negar um comportamento que é o oposto do esperado. As pessoas trans não são aquilo que o recrutador espera”, explica o especialista na área, doutorando em Serviço Social e autor do livro “Os não recomendados”, Moisés Menezes.

A situação já foi vivenciada inúmeras vezes pela técnica em meio ambiente e estudante de Serviço Social Rhany Mercês. Mesmo com dezenas de diplomas de aperfeiçoamento, ela não consegue emprego formal. “Já me candidatei para tudo. Vendedora, recepcionista, vagas com qualificação muito abaixo da minha e não consigo. O recrutador me liga entusiasmado com o currículo e marca a entrevista. Quando chego, consigo ver no rosto dele a surpresa e a decepção”, lamenta. 
As respostas são as mesmas: “infelizmente você não tem o perfil da vaga ou outra pessoa foi escolhida e quando surgir uma nova oportunidade, entraremos em contato”. Até hoje, no entanto, ninguém ofereceu uma oportunidade.

Virada
A solução encontrada por Naomi Savage foi dar uma guinada de 180 graus na vida e na carreira. Hoje modelo, atriz e produtora cultural, ela tem formação completa como arte finalista e chegou a trabalhar em grandes locais antes de iniciar a transformação. Depois de assumir o gênero com o qual se identifica, no entanto, as portas se fecharam. Sem esperança de seguir no ramo, viajou a passeio para o Rio de Janeiro e acabou se apaixonando pela Cidade Maravilhosa, onde, segundo ela, “as mentes parecem mais abertas”. Mudou-se para lá.

Após algum tempo em busca de emprego, e sem sucesso, a saída para a sobrevivência foi a prostituição. “Busquei por emprego formal, mas como não conseguia nada devido à minha identidade de gênero, acabei tendo que me prostituir. Ao conhecer a Casa Nem (casa de acolhimento a transexuais, travestis e transgêne-ros), tudo mudou. Lá, eu gerenciava o bar do espaço de festas e cuidava da agenda de eventos. Foi lá também que iniciei os trabalhos como modelo e fui a diretora cultural da Pride House, evento que acontece durante as olimpíadas”, diz.DivulgaçãoA jornalista Bárbara Miranda Dias teve muito apoio da família, mas sabe que seu caso é uma exceção

Com 1,90 m de altura e com traços que lembram a top internacional Naomi Campbell, ela encontrou uma nova profissão. Hoje, além de fotos e passarelas, Naomi é produtora cultura de teatro e já fez curtas e longas. Mas apesar de estar no ramo artístico, teoricamente mais liberal, o preconceito permanece. “É péssimo isso, mas confesso que me encontro na melhor forma hoje. Posso ser eu mesma, usar as roupas que gosto. Sou muito mais feliz hoje do que antes”, afirma.

Exceção
Não foi fácil, mas a jornalista e publicitária Bárbara Miranda Dias conquistou o espaço dela no mercado. Em Sete Lagoas, onde mora, é responsável pelo Hoje Cidade e por um programa na rádio Eldorado. “Mas sei que sou exceção. Só cheguei onde estou porque tive o apoio incondicional dos meus pais e da minha irmã, que não me deixaram desistir da escola e da faculdade”, comenta. Além disso, para compensar o bullying que sofria e desviar dos olhares maldosos, ela conta que sempre se esforçou ao máximo para fazer o melhor possível e ser a melhor aluna da turma.

E mesmo com todo o sucesso, não conseguiu se desvencilhar de situações constrangedoras. “Uma vez, em uma boate, um homem esmurrou a porta do banheiro pedindo que eu saísse. Fiquei sem chão”, lamenta. Maurício Vieira

Mesmo qualificada, Rhany Mercês conta que os entrevistadores ficam decepcionados ao vê-la

Rejeição nas empresas é grande, mas algumas iniciativas começam a mudar essa realidade

Única mulher trans servidora de uma grande instituição, a engenheira elétrica Samara Gabi Pimenta viveu um pesadelo no início da transição. “Por ser um ambiente que lida bem com a diversidade, eu achei que não teria problemas, mas foi muito difícil. Uma vez, eu passava em um corredor enquanto professores e servidores davam gargalhadas por minha causa. Uma colega chegou a perguntar qual assento sanitário eu usava, porque ela não queria encostar nele. Sofri muito preconceito”, lamenta.

Antes de assumir o gênero com o qual se identifica, ela conta que encenava o tempo todo. “As pessoas não imaginavam o que eu sentia. Por fora, eu era um homem como qualquer outro”, afirma.

A rejeição ao público trans no mercado de trabalho costuma ser frequente, embora não haja dados concretos sobre o assunto. “É como se fosse um público à margem”, critica o doutorando em Serviço Social e autor do livro “Os não recomendados”, Moisés Menezes.

A advogada Mariana Machado Pedroso, sócia responsável pela área trabalhista do escritório Chenut Oliveira Santiago, afirma que o preconceito nas empresas pode, inclusive, levar as companhias, e até mesmo os dirigentes delas, a serem processados por danos morais. “As empresas têm que ficar muito atentas e os empregados devem buscar os seus direitos”, aconselha. 

Consultoria
Para evitar os processos e aumentar a diversidade, muitas companhias desenvolvem programas de inclusão de pessoas trans nos quadros corporativos. Criada em São Paulo, a TransEmpregos atua na consultoria de empresas e na recolocação de trabalhadores trans desde 2013. No país, hoje 337 companhias são auxiliadas pelo grupo.

“Os problemas enfrentados são os mais diversos. Muitos trans começam a fazer a transição e são demitidos, outros não têm o nome social respeitado e há, ainda, quem tenha que lutar para usar o banheiro”, exemplifica Maite Schneider, uma das fundadoras do movimento.

A Atento, empresa de call center, é uma das companhias que recebe consultoria do TransEmpregos. Dos 80 mil empregados alocados no Brasil, 1,3 mil usam o crachá social, com nome diferente do de batismo. A empresa destaca que nem todos são trans.

Além do crachá social, na empresa o funcionário pode utilizar o banheiro com o qual ele se identifica. “Entendemos a diversidade na Atento como um ativo estratégico, o qual devemos cuidar e potencializar, pois permite desenvolver o potencial das pessoas, multiplicar as oportunidades de aprendizagem, a capacidade de inovação e melhorar a nossa adaptação ao ambiente. Temos como princípio, em nossos 20 anos de história, a difusão e a valorização da diversidade, desde a contratação de funcionários até a implantação de projetos de conscientização e inclusão”, diz Margarete Yanikian, Gerente de Responsabilidade Social Corporativa da Atento. Na empresa, além dos atendentes, há transgêneros responsáveis pela supervisão. 

Vivo e Tim também adotam política de inclusão, com crachá social e mudanças no recrutamento. Em uma pauta mais ampla, as teles garantem aos companheiros dos empregados, independentemente da orientação sexual, planos de saúde e odontológico, licença casamento, licença maternidade, licença paternidade, descontos em estabelecimentos cadastrados e todos os benefícios para filhos adotivos.

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