Descriminalização da posse de drogas para consumo pessoal: qual o fundamento?

11/07/2024 às 06:00.
Atualizado em 12/07/2024 às 17:21

Vinícius da Costa Gomes*

A descriminalização da posse de drogas para consumo pessoal foi um dos grandes assuntos dos últimos dias, mas, você sabe o fundamento dessa decisão? Não?! “Bora lá” entender!

O art.28 da lei 11.343/06 afirma que é crime adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou ter consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo à legislação. Logo, para que esse crime ocorra, se torna necessário que as drogas estejam com o autor e tenham a finalidade de serem consumidas por ele.

O entendimento que prevalecia era de que seria possível criminalizar essa conduta, já que existiria uma ofensa à saúde pública. Assim, o STF analisou se a conduta afetaria a saúde pública ou somente o próprio autor. A pergunta é relevante no Direito Penal, já que só é possível criminalizar uma conduta se ela lesar um bem jurídico de um terceiro (somente se ela atingir alguém além do próprio autor).

A corte decidiu que esse crime ofende o princípio da lesividade. Princípio, professor? Não sou jurista! Bom, os princípios, de forma leiga e superficial, são normas que orientam a interpretação do Direito. Desta forma, quando alguém vai analisar uma conduta criminosa ou a lei que traz determinado crime, deve, necessariamente, analisar sob a ótica dos princípios. A lesividade serve de orientação e é um limite ao legislador.

O princípio da lesividade (ou ofensividade) decorre do direito à privacidade (que decorre da liberdade). Ele afirma que uma conduta só pode ser crime se oferecer perigo real ou causar dano efetivo a um bem juridicamente protegido. Logo, seria possível a criminalização da posse de drogas para consumo pessoal, afinal há perigo ou dano à saúde coletiva. Bom, esse realmente foi durante muito tempo o entendimento dos juristas, contudo, ele sempre foi questionado pelos penalistas.

O questionamento deriva da finalidade da lesividade. Nilo Batista explica que esse princípio tem quatro funções: 1) de uma atitude interna (ex: pensamento); 2) de uma conduta que não exceda o âmbito do próprio autor (ex: autolesão); 3) de estados ou condições existenciais (ex: ser judeu); 4) condutas “desviadas” que não afetam qualquer bem jurídico (ex: incesto). A segunda finalidade foi a que o STF utilizou na decisão.

O legislador não pode incriminar nenhuma conduta que não ultrapasse o âmbito do próprio autor. Nota-se que é por esse motivo que não se pode criminalizar o suicídio, a autolesão (de uma forma geral) e a prostituição.

O suicídio pode até ser condenado socialmente, mas não pode se tornar um crime, já que somente o próprio suicida é atingido pela conduta (claro, pensando numa tentativa). A mesma lógica é aplicável à autolesão. Não se pode criminalizar o ato de se tatuar, mesmo que ela seja uma lesão à integridade corporal (afinal são diversos furos na pele). Necessário ressaltar que é possível criminalizar se atingir um terceiro, tanto que há o crime de instigar, incitar ou auxiliar o suicídio ou a autolesão. Nesses casos uma pessoa atinge diretamente outro bem jurídico (extrapola o seu próprio corpo).

A prostituição não pode ser crime pelo mesmo motivo. Assim, como a droga, prostituir pode não fazer bem ao indivíduo e às vezes afeta até a saúde de terceiros, mas o legislador não pode criminalizar por ofensa a lesividade. Prostituir é uma decisão autônoma do próprio indivíduo (autodeterminação), o Estado não pode interferir, já que ela só atinge quem tomou essa decisão. O “cafetão”, por outro lado, pode ser punido, já que nesse caso ele explora uma terceira pessoa (não se trata de autolesão), ele a utiliza como objeto para que ele ganhe lucro.

O STF decidiu exatamente nesse sentido. Ele não legalizou usar drogas, não afirmou que ela é saudável, nem legislou invadindo a competência do Congresso. A corte somente afirmou que o legislador não pode criminalizar a autolesão em cumprimento ao princípio da lesividade. Ressalta-se ainda que o Direito Penal só permite a punição do próprio autor do fato típico, logo, não se pode imputar ao usuário os malefícios coletivos decorrentes da atividade ilícita. Além disso, a ligação é muito remota, já que está fora do âmbito de imputação penal do usuário. Mas, atenção: a corte descriminalizou, mas não legalizou!

* Mestre em Direito. Especialista em Constitucional, Criminologia e Educação. Professor da Nova Faculdade, Promove, Kennedy e Universidade Salgado Filho. Assessor da Ouvidoria de Prevenção e Combate à Corrupção. Membro da Comissão de Educação Jurídica da OAB.Professor online nas horas vagas: @profviniciusgomes (instagram, YouTube, Facebook, TikTok e X).

Compartilhar
Ediminas S/A Jornal Hoje em Dia.© Copyright 2024Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por