Entrevista

'A criança do movimento tira o adulto da zona de conforto', afirma psicóloga infantil

Doutora em educação, Cecília Antipoff fala sobre banalização nos diagnósticos de transtornos

Pedro Melo
pmelo@hojeemdia.com.br
03/06/2024 às 07:30.
Atualizado em 03/06/2024 às 08:03

"Quem tem uma criança do movimento em casa não tem dúvida, sabe?", afirma Cecília Antipoff (Maurício Vieira)

"Quem tem uma criança do movimento em casa não tem dúvida, sabe?", afirma Cecília Antipoff (Maurício Vieira)

Algumas crianças não param quietas simplesmente porque não conseguem ficar paradas. E esse universo infantil pode ser incompreendido pelos adultos, que não raro suspeitam de transtornos – como do Déficit de Atenção, o TDAH. Mas se acalmem, pais! Seus filhos podem apenas estar precisando de liberar energia, explica a doutora em educação, escritora e psicóloga infantil e familiar Cecília Antipoff, autora do livro “Criança do Movimento – Por menos diagnóstico e medicamento”. Nesta entrevista, a especialista esclarece que essas crianças não precisam ser diagnosticadas nem medicadas. É só compreender as necessidades delas, com adaptações na rotina.

O que é uma criança do movimento?
Vou dar um exemplo para ficar mais palpável. Eu recebi uma criança no consultório com 3 anos. A queixa era que ela estava muito agitada na escola, evitando contato, se incomodando com o barulho, evitando se socializar. Se olhar para isso com olhar raso, a gente fecha um diagnóstico apressado. Qual é o convite? É escutar a família, o contexto da criança. Essa criança ficou dois anos e meio dentro de um apartamento. A família muito reclusa por conta da pandemia, preocupada com várias questões. Ela ficava o dia inteiro nas telas, o pai e a mãe trabalhando em home office. E ao entrar na escola, ela vai estranhar o contato com as outras crianças, o barulho, a mudança de rotina. Então, qual foi o trabalho com essa criança? Primeiro, ajustar as expectativas da família, mostrar que ela precisava de tempo para se adaptar a esse novo contexto. Não é porque ela tem transtorno, é porque ela é uma criança que tem uma necessidade de movimentação, mais intensa, e isso é uma das linhas de frente do meu trabalho, ajudar os adultos a entender as crianças que eu venho a chamar de crianças do movimento.

É uma criança que tem uma necessidade de se movimentar. Ela tira o adulto da zona de conforto. São crianças que precisam se levantar mais da mesa. No contexto de sala de aula, é uma criança que vai precisar se movimentar, ela não tem paciência para ficar quatro horas e meia sentada ali, olhando o professor.

Quais os riscos de um possível diagnóstico errado dessas crianças?
A gente vive um momento atual de uma banalização nos diagnósticos de transtornos em crianças. Eu digo que hoje está muito difícil ser criança no contexto atual, porque os adultos vêm analisando de forma apressada os comportamentos das crianças. Se uma criança está com um comportamento mais agitado, se ela pergunta demais, se ela não para quieta, os adultos, e quando eu falo adultos eu estou dizendo da escola, os educadores, até os profissionais da área da saúde, como psicólogos e fonoaudiólogos, já olham para esses comportamentos e rapidamente encaixam em diagnósticos. Ah, esse comportamento remete ao TDAH, então essa criança é hiperativa por conta disso. E isso está acontecendo em todos os contextos independentes, até profissionais da infância, que estudaram para trabalhar com criança, estão tendo essa conduta de olhar para os comportamentos de forma rasa e já associar a um transtorno.

E o que eu tenho observado na minha clínica é que quando uma criança apresenta um comportamento, esse comportamento não pode ser o nosso ponto de chegada, ele é o nosso ponto de partida. Eu vou olhar esse comportamento e não vou ignorar, vou olhar para e investigar, pois um diagnóstico errôneo pode significar uma realidade diferente e errada para a criança.

Como os pais podem lidar com essas crianças?
Normalmente são crianças que já acordam cedo, já com nível de energia. E o que é uma rotina saudável para essa criança que eu preciso proporcionar? Eu chamo de momentos de expansão, que é um brincar livre, ao ar livre de preferência, e que essa criança possa correr, ter desafios corporais, os esforços são muito bem-vindos. Tempo livre, na rotina da criança para um brincar livre, em expansão, e não só um brincar dentro de casa. Outro ponto importante é dosar com muito critério o tempo de tela. A criança do movimento, que fica muito tempo na tela, tem uma tendência, depois que desliga, a ficar às vezes mais nervosa, e aí apresentam o comportamento mais agressivo. O mais importante é a família cuidar e saber lidar. Por exemplo, essa criança vai precisar levantar da mesa várias vezes e isso não é um problema. Os pais não têm que levar o prato correndo atrás da criança para limitar onde ela for. O certo é deixar o prato na mesa, a família se sentar na mesa e deixar ela livre para sair, mas explicar que ela precisa voltar para comer.

A criança do movimento necessita de mais espaço? Um quintal?
Obviamente, a criança do movimento se beneficia muito quando está no espaço, quando tem um fácil acesso a um quintal. Ou então quando mora em um apartamento, mas que tem uma área, que se tem essa liberdade em brincar. Mas a gente precisa olhar para a vida real. Às vezes, estou diante de uma família que tem uma criança do movimento e mora em apartamento. Nesses casos, oriento as famílias a proporcionarem oportunidades para o filho vivenciar essa brincadeira em expansão. Por exemplo, em alguns momentos quando eu morava em apartamento com o meu filho, a gente colocava vários colchões na sala para ele poder pular, dar cambalhota. A gente arredava os móveis da sala para ele brincar em alguns momentos e depois voltava à configuração natural normal ali da sala. Então é pensar em alternativas dentro da minha realidade em que eu possa ajudar o meu filho a vivenciar essa necessidade. Claro que os espaços externos são mais propícios para essa criança, mas se eu não tenho, preciso pensar em como fazer isso dentro do apartamento. Fim de semana também é importante planejar e ir a espaços abertos, um parque, uma praça.

Qual a importância dos esportes na criação dessas crianças?
O esporte é sempre muito bem-vindo. É uma forma da criança cuidar do corpo aprendendo novas habilidades. Mas o que eu acho mais importante para a criança do movimento, até mais que o esporte, é o brincar livre em expansão. O que é o brincar livre em expansão? É eu tirar um tempo na rotina do meu filho, uma, duas vezes na semana, ou todo dia, meia hora, 40 minutos, em que ele possa brincar corporalmente do jeito que o corpo dele pede. Pode ser que ele vá correr, pode ser que ele vá brincar ali na areia, enfim. Mas o esporte é um organizador para essa criança, porque ele tem essa proposta de trabalhar o corpo da criança, colocar pra fora.

Sobre essa questão dos momentos de brincadeira, de expansão, de lazer, muitos pais ficam o dia inteiro trabalhando. Eles não têm essa possibilidade. Como fazer essa separação entre a rotina da criança e a do adulto?
O que acho fundamental: uma vez que sou mãe, e mãe de uma criança do movimento, é entender que sou o guardião dessa criança. Gosto muito de trazer essa mensagem para as famílias. Por mais que a minha vontade seja chegar em casa, ficar quietinha, eu preciso internalizar a missão que tenho nessa vida. Eu vou precisar sair da minha zona de conforto. Vou precisar brincar com meu filho, disponibilizar tempo para estar com ele, precisar abrir mão muitas vezes do que eu gostaria de fazer no meu fim de semana, ou quando eu chego do trabalho. Quando os pais não fazem isso, e querem encaixar a rotina deles à criança, ela vai transbordar isso no comportamento, vai ter uma tendência natural a ficar mais desafiadora, a ter um comportamento mais agressivo. E essa é a forma que ela vai ver de comunicar a mãe e ao pai que não está bom, que os pais não estão proporcionando o que ela realmente precisa, que é essa conexão.

E em relação ao uso de telas? Como a senhora enxerga a utilização delas no cotidiano das crianças?
É um assunto muito delicado e a gente tem que olhar com muito critério. Eu não levanto a bandeira da tela zero, mas da tela como um recurso, não como o único recurso. Se eu tenho uma reunião que preciso participar aqui no meu trabalho, estou sozinha com os meus filhos e não posso sem interrompida, eu posso usar a tela como um recurso. Depois vou lá e desligo. É diferente de usar a tela como muitas famílias estão fazendo de ser o primeiro e único recurso. Para se alimentar, eu uso a tela, criança chorou, eu uso a tela, criança não está dormindo, eu uso a tela. Isso é extremamente danoso, a criança começa a ficar viciada, dependente e tem vários prejuízos no desenvolvimento da criança.

Há três anos, enfrentávamos a pandemia da Covid-19 com as crianças dentro de casa, afastadas da escola. Ainda chegam muitos casos no consultório de crianças com transtornos ou traumas causados por conta desse isolamento?
Eu não posso receber nenhuma criança e escutar nenhuma família sem voltar com essa família ao ano de 2020. A primeira pergunta que eu faço para as famílias é como foi o ano de 2020 para eles e para a criança. Nesse período as crianças foram convocadas para um universo das telas por necessidade, elas foram inseridas nas rotinas dos adultos. A escola foi para o computador. Essa foi a realidade de uma maioria esmagadora das famílias. Então, isso causou um impacto.

Tem muitas crianças, por exemplo, que hoje apresentam um atraso na fala, que hoje apresentam um desafio na socialização. Teve criança que nasceu em 2020 e cresceu dentro de um apartamento, enfiada nas telas. A pandemia trouxe muitos impactos a muitas crianças.

Como os pais podem identificar uma criança do movimento?
Eu costumo brincar que quem tem uma criança do movimento em casa não tem dúvida, sabe? É uma demanda muito intensa, normalmente é uma criança que acorda muito cedo, que tem essa necessidade de brincar, de um brincar muito corporal, muito sensorial, é aquela criança que nos demanda a literalmente sair do sofá. Normalmente, é essa criança que traz esse pedido do movimento da experimentação e que nos cansa no âmbito físico. Tenho uma frase que é assim: a criança que se movimenta muito vai incomodar, porque ela nos demanda que a gente saia da nossa zona de conforto. Só que uma coisa que eu aprendi, que achei importante fazer, é que não são as crianças do movimento que têm que se adaptar, é o mundo adulto que precisa se movimentar para acompanhá-las.

Quando procurar alguém, e a quem procurar?
Se eu identifiquei que tenho uma criança do movimento, eu não preciso procurar um profissional, preciso procurar espaços para o meu filho brincar livremente. Preciso procurar escolas em que a metodologia é mais flexível que o brincar livre, o tempo ali, até o tempo corporal, ele é priorizado na proposta pedagógica. É muito mais um ajuste de cuidar da rotina dessa criança. Nesse contexto ela vai precisar ir para espaços abertos, diminuir a tela e eu vou buscar escolas e espaços em que eu sinto que o meu filho vai ser acolhido e validado e não buscar um diagnóstico. O diagnóstico a gente busca quando a criança vai apresentar prejuízos, quando essa movimentação em excesso produz prejuízos. E ela mobiliza prejuízos em alguns âmbitos: na socialização da criança, na produtividade da criança, na execução e na finalização das tarefas do cotidiano. Aí sim possa ser interessante procurar uma ajuda profissional para saber lidar com essas situações.

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