Lançado hoje, relatório da Comissão da Verdade joga luz sobre período sombrio em MG

Filipe Motta
fmotta@hojeemdia.com.br
13/12/2017 às 06:08.
Atualizado em 03/11/2021 às 00:11

(Comissão da Verdade em Minas Gerais/Divulgação)

A capital mineira foi protagonista de 38 atentados terroristas promovidos por grupos de direita contrários à redemocratização do país entre os anos de 1965 e 1987. Além disso, 109 trabalhadores rurais foram mortos ou ficaram desaparecidos, bem como indígenas e sindicalistas do interior sangraram com os anos de chumbo em Minas Gerais. 

Os dados fazem parte do relatório final da Comissão da Verdade em Minas Gerais (Covemg) e serão divulgados hoje.

Numa série de audiências e entrevistas, além de pesquisa documental, a Comissão da Verdade ouviu não só os belo-horizontinos, mas todos os mineiros que queriam compartilhar as experiências daquelas décadas. 

“Eu estava distribuindo jornais quando recebi a notícia de que as pessoas que o estavam lendo estavam sendo presas. E que estavam (a polícia) me procurando. Ao invés de fugir, eu me entreguei. E aí começou um calvário. Fiquei dez dias subjugado em Ipatinga, fui torturado de todas as formas possíveis. Depois eu vim para o DOPS, em Belo Horizonte, e novamente, aqui, continuaram uma sessão de torturas”, conta o jornalista Jurandir Persichini Cunha, um dos integrantes da Comissão da Verdade em Minas Gerais. 

Ele escrevia no jornal ‘Liberdade’, denunciando atrocidades cometidas por militares em Ipatinga, no Vale do Aço. Por lá, sindicatos atuantes entravam em constantes atritos com as forças de repressão. Cunha foi metalúrgico em Ipatinga, antes de se formar jornalista.

Relatório
Autoritarismo, perseguição, privação de liberdades, tortura e morte. Esses são muitos dos relatos que fazem parte das duas mil páginas que constituem o relatório da Comissão da Verdade. 

A pesquisa vai do período que antecede o golpe civil-militar de 1964, buscando entender articulações que levaram à fragilização do regime democrático que existia no país, e se estende para além da redemocratização de 1985, por entender que violações de direitos continuaram a ocorrer de forma sistemática até a promulgação da Constituição de 1988.

Além da morte e tortura de estudantes e militantes de movimentos sociais e partidos de esquerda nas grandes cidades de Minas, o relatório detalha como trabalhadores rurais foram mortos ou desaparecidos, bem como indígenas e sindicalistas do interior foram vítimas das ações envolvendo as forças armadas e as polícias Civil e Militar, muitas vezes com o suporte de empresários e políticos civis.

Dentre vários pontos, o documento também relata em detalhes os 38 atentados terroristas promovidos por grupos de direita contrários a redemocratização do país, que ocorreram em Belo Horizonte entre 1965 e 1987, contra militantes de direitos humanos, jornalistas e instituições como a UFMG e o Instituto de Educação. O relatório também cuida da cassação de políticos e exoneração de funcionários públicos, vítimas de perseguição do Estado, e da retirada de crianças do convívio familiar.

Uma audiência pública às 9h30 da manhã de hoje, na Assembleia Legislativa, aberta ao público, e uma solenidade às 17h, no Palácio da Liberdade, formalizam a entrega do relatório, que, ao final do texto, traz uma série de recomendações ao governo para trabalhar a memória do período e evitar a repetição do autoritarismo.

Por meio de nota, o Exército informou que não irá se manifestar. O Ministério da Justiça tem instalada uma Comissão da Anistia que, conforme o órgão, “realiza apenas as análises dos requerimentos de anistia protocolados nesta pasta”.
 

Discussão no Brasil sobre o período de intervenção militar ainda é frágil, diz especialista

O coordenador-geral da Covemg, Robson Sávio, pede que o trabalho não se esgote com a entrega do relatório. “Que, de posse desse material, a comunidade científica, a imprensa, as entidades de direitos humanos e da sociedade civil possam avaliar o trabalho e cobrar das autoridades públicas formas de mitigação das violações de direitos humanos no presente ”, afirma o professor.

“Temos o papel educativo e político de levar essa discussão. Vemos, em muitos países, principalmente na América Latina, o aprofundamento das investigações referentes aos períodos de exceção e a punição de culpados. E isso ainda não chegou ao Brasil. Temos um déficit de democracia e cidadania. Projetos como esse podem possibilitar o aprofundamento dessas questões”, prossegue Robson Sávio.

Nesse sentido, em 2012 o governo do Uruguai reconheceu a responsabilidade pelas vítimas do período ditatorial naquele país. 

Na Argentina e no Chile, militares envolvidos em torturas, mortes e desaparecimentos têm sido condenados pela Justiça. No Brasil, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de 2010, manteve o perdão existente na Lei da Anistia (que é 1979) aos envolvidos no crimes praticados no período da repressão. A Comissão Nacional da Verdade, criada em 2011, apresentou seu relatório final em 2014, apontando violações de direitos ocorridos no período, mas a responsabilização dos culpados esbarra na Lei da Anistia.

Na tentativa de entender o antecedentes do golpe militar de 1964, o relatório da Comissão em Minas também retoma, por exemplo, a chacina de Ipatinga, em outubro de 1963, com oito mortos oficiais, quando trabalhadores da Usiminas (à época controlada majoritariamente pelos governos de Minas e federal) e moradores da cidade foram assassinados pela Polícia Militar, durante mobilização de trabalhadores. Ou o caso dos 74 sindicalistas da antiga Belgo-Mineira, em João Monlevade, demitidos assim que a ditadura foi instaurada, em 1964. Bem como a criação da Guarda Rural Indígena (Grin), conduzida pela Funai com apoio da PM mineira, com o objetivo de treinar índios para realizar ações de repressão contra os próprios índios.

SAIBA MAIS
O governador Fernando Pimentel assinou decreto prorrogando os trabalhos da Comissão da Verdade até 7 de fevereiro de 2018. “Mais do que nunca, é necessário que a Comissão da Verdade continue seu trabalho no Brasil inteiro mostrando o que foi o horror da ditadura militar, do regime autoritário a partir do golpe de 64”, disse o governador em vídeo postado nas redes sociais, ao assinar o decreto.

A Comissão da Verdade em Minas Gerais foi criada pelo governo estadual em 2013, ainda na gestão de Antonio Anastasia (PSDB). 

A proposta era acompanhar e aprofundar os trabalhos realizados pela Comissão Nacional da Verdade, de iniciativa do governo federal e finalizada em 2014.

A Comissão busca ainda promover, com base nos informes obtidos e verificações efetivadas, a reconstrução da história dos casos cabíveis em suas atribuições, assim como colaborar para que seja prestada assistência às vítimas ou a seus familiares.

Mais de 80 pesquisadores (incluindo voluntários) e 40 bolsistas de iniciação científica, envolvendo órgãos como Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (Fapemig), a Secretaria de Direitos Humanos e as Faculdade de Direito e de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) da UFMG participaram dos trabalhos da Comissão Mineira. 

Outros Estados, como São Paulo, Bahia, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, e municípios, como a capital paulista, também têm criado comissões nos últimos anos.

Nos próximos meses, todo o banco de dados com a documentação de referência do relatório também estará disponível para internautas. O relatório final está disponível, a partir de hoje, no site da Comissão: www.comissaodaverdade.mg.gov.br

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