Equipe de colaboradoras do "Cê Viu Isso" na Pedreira Prado Lopes (Foto: "Cê Viu Isso?"/ Divulgação)
“A gente sabe que tem muitos direitos, mas muitos não são reconhecidos pela própria pessoa que depende e precisa deles. Nosso trabalho é mostrar exatamente isso”. A Fala é da professora Valéria Borges, uma das fundadoras do jornal “Cê Viu Isso?”, um projeto que nasceu para conscientizar moradores do aglomerado da Pedreira Prado Lopes, região Noroeste de BH, sobre a Covid-19 e se descobriu como fonte de mobilização e promoção de justiça social.
Com pouco mais de um ano de fundação, “O Cê Viu Isso?” é uma ideia nascida da amizade entre Valéria e a jornalista Élida Ramirez. Para ela, o jornalismo é deficitário em retratar e dar voz aos moradores das periferias de grandes cidades. Desse incômodo veio a ideia de criar um meio de comunicação específico para a Pedreira.
“Quando começou a pandemia eu fiquei muito mexida, porque todo mundo teve algum tipo de deslocamento. E eu fiquei muito preocupada, porque eu me sentia supostamente segura, podia fazer isolamento. Mas e as pessoas que não podem? Como jornalista eu acho que a cobertura da periferia fica rasa, falta a voz popular. Então, eu pensei em um projeto e materializei isso na Valéria, que é um afeto meu”, comenta Élida.
O “Cê Viu Isso?” hoje aborda temas gerais da comunidade, trata do que acontece na região, cobra serviços de infraestrutura e tem conteúdos relacionados à inclusão social dos moradores da Pedreira Prado Lopes.
O jornal tem edições semanais publicadas aos domingos no YouTube e posta conteúdos com maior frequência no Instagram. Ao longo de sua curta, mas marcante existência, já chegou a ter 20 colaboradores dentro da comunidade. Para Valéria, a materialização do projeto é a realização de uma ideia que vem de longe.
“Com 13 anos eu fiz meu primeiro jornal na Pedreira e vendia por 50 centavos para comprar mais folha e fazer mais edições. Eu nasci na comunidade e eu sempre fui muito ativa com tudo lá, mas a gente começa a trabalhar e deixa uns sonhos pra trás. A gente, na verdade, sempre quis mesmo é trazer para a comunidade a informação correta do que acontece no mundo,E, aí, o tema deixou de ser só a Covid”, explica.
(Foto: "Cê Viu Isso"/ Divulgação)
Élida conta que os conteúdos do jornal falando sobre a Pedreira Prado Lopes com pessoas da comunidade e com temas próximos aos moradores geram uma mobilização que se materializa na cobrança por direitos e atenção do Estado ao local que, por vezes, fica abaixo do radar do poder público.
“Temos agora uma obra do Centro de Saúde que saiu do papel depois de 10 anos. Não foi um desdobramento exclusivamente de responsabilidade do jornal, mas a gente faz parte desse movimento. Hoje a Secretaria de Estado de Saúde (SES-MG) manda periodicamente conteúdos sobre outros assuntos para a gente divulgar no jornal. Eles acharam a gente. Aí que acho que reside o caminho para a justiça social, é na pequena ação que leva em consideração as especificidades daquele ambiente”, afirma.
Dia Mundial da Justiça Social
Neste domingo, 20 de fevereiro, é celebrado o Dia Mundial da Justiça Social, data definida pela Organização das Nações Unidas (ONU) para marcar a luta por direitos ao redor do planeta. Para o professor da UFMG e pesquisador do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp), Frederico Couto Marinho, o termo pode ser aplicado na prática como o acesso à cidadania.
“A gente pode pensar nesse conceito de Justiça Social como o acesso à cidadania, porque é algo definido e previsto na Constituição Federal de 1988 e nas leis estaduais e municipais. Para atingirmos o ponto de uma sociedade realmente justa, é necessário que se pense em políticas públicas de médio e longo prazo que exigem tempo e investimento”, afirma.
O acesso ao saneamento básico, por exemplo, é um dos direitos previstos constitucionalmente no Brasil. Caroline Messias, colaboradora e coordenadora de redes sociais do “Cê Viu Isso?”, relata uma situação em que o jornal foi importante para que moradores da Pedreira Prado Lopes se mobilizassem para cobrar do poder público uma intervenção neste sentido.
“Teve um cano que estava estourado e vazando muita água aqui. Publicamos, as pessoas reclamaram e ele foi consertado pela prefeitura rapidamente. Quando você vai assistir a um jornal na televisão, eles falam do mesmo problema, mas numa linguagem que quem é de favela não entende. Quando essas pessoas percebem que o problema deles é compartilhado e que as pessoas estão reivindicando, eles se movimentam, cobram por seus direitos”, conta.
Para o professor Frederico Marinho, a possibilidade de se comunicar em microespaços é um benefício proporcionado pela informação digital e pelas redes sociais. Ele explica que a possibilidade de se ver e se identificar em um conteúdo tem capacidade de mobilizar as pessoas.
“O que é interessante das redes sociais e da tecnologia é que ela dá visibilidade para problemas locais. Esse instagram funciona como um canal coletivo: o que me incomoda, incomoda também meu vizinho. As pessoas, às vezes, até nem se conhecem, mas se torna um canal coletivo para demandar o poder público é uma forma de pressão democrática”, avalia.
Pertencimento e causas sociais
“Uma senhora que eu nem conhecia um dia me chamou para entrar na casa dela. E me mostrou que a sua netinha estava cuidando do cabelo de uma boneca e que ela o estava deixando igual ao meu. Eu não esperava esse reconhecimento e isso me deu forças para continuar fazendo o trabalho”, conta Caroline Messias.
A jovem de 22 anos é responsável pelo quadro “Pente que me penteia”, no jornal. Ela conta que tinha vergonha de aparecer quando começou a colaborar, mas a repercussão popular a encorajou a continuar a coluna que trata sobre cuidados pessoais sob a perspectiva das mulheres negras.
O espaço dado aos moradores da Pedreira Prado Lopes é uma das ferramentas usadas pelo jornal para tratar de causas sociais e identitárias importantes com a linguagem e o rosto dos moradores locais. Élida Ramírez conta que existe uma preocupação de dar voz aos voluntários e que eles apresentem suas experiências quando participam das edições.
“As voluntárias foram colocando algumas coisas muito interessantes. A Nair, por exemplo, trouxe uma questão da sessentona. A mulher de periferia é, muitas vezes, vista como a novinha do funk, ou como vítima de violência doméstica ou arrimo de família. E a mulher de 60 anos ou mais não é vista. Tem outra voluntária, a Iara, que é homossexual. A gente fala do beijo gay, mas não fala da realidade da pessoa. Ela tem um churrasquinho na comunidade que todo mundo chama de “Churrasquinho da Sapatão”, conta a jornalista.
Para Valéria, a estratégia do jornal é tratar sobre temas espinhosos e sobre a reivindicação de direitos de forma simples, direta, mas pacífica.
“Uma das coisas que o jornal tem feito é uma comunicação não violenta. Queremos mostrar que podemos obter os direitos sem usar a violência, que, muitas vezes, o outro usa para tentar nos parar nessa luta”.
A realidade comprova a importância de se tratar sobre temas relacionados às minorias, grupos que têm seu acesso à justiça social freado pelo preconceito e a violência. Em Minas Gerais, dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) revelam que mais de 500 casos de injúria racial e racismo foram registrados em 2021. O número aumenta anualmente desde que começou a ser registrado em 2019.
A violência contra a mulher soma mais de 144 mil registros no ano passado, de acordo com a Sejusp. O número de casos registrados diminuiu em relação a 2020 (145.424) e 2019 (151.054). Mas a queda pode estar relacionada com uma subnotificação motivada pelo isolamento social na pandemia, segundo o professor Frederico Marinho.
“A pandemia aumentou o sub-registro, casos que não chegam ao poder público. É um fenômeno extremamente complexo que impacta a vida da mulher em todas as esferas, na família e no trabalho. Essa violência vai desde um assédio moral, ameaça agressão, tentativa de homicídio e feminicídio ou seja, tem uma escalada”, analisa.
O número de casos de intolerância religiosa aumentaram nos últimos três anos em Minas. Dados da Sejusp apontam que foram 96 registros de crimes, tendo o preconceito com a fé alheia como causa presumida no ano passado. Em 2020, o número era cerca de 20% menor.
Quando o tema é a homofobia, Minas lidera a região sudeste no ranking de mortes violentas de pessoas LGBTQIA+ por milhão de habitante, com 0,96. O dado é da última atualização divulgada pelo Grupo Gay da Bahia. Em São Paulo o índice é de 0,87; no Rio de Janeiro, 0,62; e no Espírito Santo, 0,28. O combate a esta face do preconceito também está presente no conteúdo do “Cê Viu Isso?”
Para Frederico Marinho, o número de pessoas em situação de rua também é uma questão grave quando se pensa na falta de acesso à cidadania e, por consequência, de justiça social. Atualmente, a Prefeitura de Belo Horizonte contabiliza uma média de 4,6 mil pessoas em situação de rua na cidade. Já o programa Polos de Cidadania, da Faculdade de Direito da UFMG, aponta que o número chegou a 8.901 em abril de 2021.
“Esse é um caso extremamente complexo. São pessoas que vêm de outros estados, municípios e mesmo pessoas de BH que acabam indo para as ruas. Reduzir esse contingente de pessoas exige uma atuação ampla. Na maioria dos casos não é apenas dar o teto; essas pessoas precisam de tratamento de saúde, de acesso a direitos básicos”, comenta.
Futuro
Para as fundadoras do “Cê Viu Isso?”, o jornal tende a romper as fronteiras da Pedreira Prado Lopes. Élida diz que o projeto já foi tema de estudos universitários e um projeto de expansão do formato está nos planos para outras comunidades.
“O “Cê Viu Isso” já foi estudo de caso da UNB, a PUC Minas está fazendo um TCC usando o jornal como estudo de caso e eu vou fazer o meu doutorado usando essa experiência. Os caminhos para esse jornal é terminar de estruturá-lo e fazer dele piloto para estar nas nove regionais de Belo Horizonte”, afirma.
Valéria conta que o projeto está ganhando corpo, caminhando sozinho e, aos poucos, se torna referência para outros pontos da cidade, que enxergam a oportunidade de colocar em prática a ideia de uma comunicação inclusiva e local, de acordo com as especificidades de cada comunidade.
“Agora mesmo eu estou em São Paulo, de férias.Tem mais ou menos um mês que estou aqui e o jornal continua. Isso é muito legal, tenho visto que é uma iniciativa que rendeu. Inclusive, tem uma moça de uma comunidade que até me procurou há uns dias querendo parcerias, querendo que a gente ajude a fazer um jornal para eles também”, comenta.
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